A casta

Estas pessoas que vivem num mundo à parte acabam por perder o contacto com a realidade. Não têm bem ideia das dificuldades do comum dos mortais. Estão tão fora da realidade, que às vezes nem sequer pensam na obrigatoriedade de cumprirem a lei. Quando Cabrita circulava a mais de 200 Km/h numa autoestrada, possivelmente nem…

Há uns trinta anos, a Presidência da República contactou o meu pai dizendo-lhe que ia ser condecorado com uma ordem qualquer.

O meu pai pegou na caneta e escreveu ao Presidente – então Mário Soares – uma carta em tom cortês, mas onde dizia que discordava da existência, na democracia, de uma nova ‘nobreza’.

Uma ‘nobreza republicana’.

Uma casta de gente ‘titulada’, existindo acima do vulgar cidadão.

E com direito a um tratamento público formal diferenciado: é o comendador Joe Berardo, o comendador Rui Nabeiro, a comendadora Clara Ferreira Alves…

No século XIX, dizia-se: «Foge cão, que te fazem barão»; agora, o perigo é fazerem-no comendador.

Mas paralelamente a esta casta de pessoas condecoradas há outra, muito mais importante, de pessoas que vivem num mundo privilegiado à parte.

Compõem-no alguns políticos, alguns gestores de grandes empresas, alguns banqueiros, alguns empresários, alguns dirigentes de clubes de futebol, alguns juízes, alguns jornalistas.

Enfim, gente com poder.

Que no futebol não vai para as bancadas, vai para camarotes – onde, além de estar separada do Zé Povinho, tem direito a lautas refeições.

E que não paga bilhete para ir aos jogos: recebe convites.

E que nas deslocações das equipas portuguesas ao estrangeiro tem frequentemente direito a viagens pagas em aviões fretados.

Estas pessoas, que acabam por se conhecer bem umas às outras – até porque o país é pequeno –, por vezes também se encontram nas férias, em festas selecionadas.

E algumas – as mais endinheiradas – convidam outras do grupo para passar uns dias em iates ou hotéis, aprofundando conhecimentos (e criando também relações de dependência).

Também é normal as grandes empresas ou os bancos organizarem ‘encontros de trabalho’ em locais paradisíacos fora do país para os quais convidam políticos, jornalistas e outras figuras influentes, com programas ligeiros de trabalho mas sobrecarregados do ponto de vista turístico. E com tudo pago, evidentemente.

Entre estes locais paradisíacos podem estar estâncias de Verão ou de Inverno, com sol e mar ou neve garantida, consoante as estações do ano.

A pandemia complicou estes programas, que chegarem a ser frequentes e normais.

Estas pessoas que vivem num mundo à parte acabam por perder o contacto com a realidade.

Não têm bem ideia das dificuldades do comum dos mortais.

Estão tão fora da realidade, que às vezes nem sequer pensam na obrigatoriedade de cumprirem a lei.

Quando Cabrita circulava a mais de 200 Km/h numa autoestrada, possivelmente nem se lhe colocou o problema de estar em situação ilegal.

Quando Ferro Rodrigues disse, com a maior descontração, «Todos a Sevilha», para assistir a um jogo da Seleção, não o fez por certo com a consciência de que estava a dizer uma parvoíce; para ele é normal uma pessoa deslocar-se aqui e ali para ver jogos de futebol, sem restrições nem dificuldades.

No caso do ministro Cabrita, ainda houve quem procurasse defendê-lo atirando as culpas para cima do motorista; como, de resto, aconteceu há dias com o ministro do Ambiente, apanhado a 200 Km/h numa autoestrada e a 160 Km/h numa estrada nacional.

Matos Fernandes sugeriu desajeitadamente que a responsabilidade era do condutor, que aliás, segundo ele… já vinha de outro Governo.

Ora, em primeiro lugar, o ministro é o ‘patrão’ do condutor – e por isso é ele que estabelece as regras a cumprir.

Em segundo lugar, o motorista circula àquela velocidade porque sabe que, transportando um governante, pode fazer o que quiser e nada lhe acontecerá.

Mais uma vez, são os privilégios da casta que vêm ao de cima.

Embora as situações sejam muito diferentes, as ‘explicações’ de Cabrita, de Matos Fernandes, de Joe Berardo, mesmo de Luís Filipe Vieira, Ricardo Salgado ou Fernando Medina sobre os casos em que têm estado envolvidos, têm um mesmo fio que as liga.

Repare-se que todos dizem que não sabiam de nada, que não se lembram de nada, que não se sentem responsáveis por nada.

Pelo facto de pertencerem a uma mesma casta, de se encontrarem com frequência nos mesmos locais, de conviverem, de beneficiarem de muitos privilégios, de partilharem as mesmas facilidades, adquiriram os mesmos tiques.

Perderam, como se disse, a noção da realidade e consideram-se acima de certas obrigações.

E, nalguns casos extremos, o sentimento de impunidade que interiorizaram leva-os a cometer casos de corrupção como aqueles que têm marcado tristemente a vida pública portuguesa.