A ti, Emma

O segundo que colheu a vida à Emma, triturando os corações de todos os que a conheceram (como se vê, bem ou mal), multiplicou-se em sessenta segundos que colheram a nossa. Foi o minuto de silêncio mais ensurdecedor que vivi numa escola sempre tão cheia de gritos de crianças com sede de vida e fome…

por Catarina Teles de Menezes 

Vocês não conheceram a Emma – e eu, por um daqueles quases da vida – também não. Digo, conhecê-la bem. Os nossos destinos cruzaram-se apenas uma vez (como é costume acontecer lá para o meio deste universo injusto e descoordenado que indecentemente dá com a mesma mão com que tira). Contudo, foram infinitos os sortudos desafortunados que tiveram a sorte desafortunada de a conhecer.

Perdoem-me os paradoxos exasperantes. Tenho pensado cada vez mais sobre essa contradição existencial que é toda a realidade que nos concebe. Esse espectro dividido entre dois polos bruscamente distantes (o norte-sul, o este-oeste, o preto-branco, o dia-noite, a vida-morte).

Foi apenas uma vez, mas foi uma vez bastante para que dela guardasse a primeira, única e última impressão de uma rapariga jovem, de sorriso rasgado permanente, olhos radiantes e coração indulgente. Tinha (tal como eu) toda uma vida por viver, mas não era apenas a juventude que ela comigo partilhava. A casa que nos moldou foi a mesma. A mesma escola e, como tal, os mesmos valores, os mesmos espaços e as mesmas pessoas.

Na semana passada, por circunstâncias que nunca anteciparia e que o tempo maldosamente adiantou, voltei a casa, regressei àquela que era a nossa família e retornei aos tempos que aqueles jardins eternizaram. Ao Liceu Francês do Porto, onde a ambas nos ensinaram que não só era possível como desejável entoar a Marseillaise com o mesmo carinho com que se entoava a Portuguesa.

A programação da cerimónia previa, após os discursos corajosos dos seus melhores amigos, a possibilidade de se dizerem “palavras espontâneas”. Depois das palavras ditas por quem melhor a conhecia, o acobardamento humano dos restantes presentes intensificou-se. Para variar, como a todas as pessoas acontece, quis dizer umas palavras no momento em que deixei de poder dizê-las.

Depressa se fez tarde e cedo se passou ao minuto de silêncio que gastei dizendo palavras espontâneas para mim mesma: “Devias tê-lo dito. Não o disseste. Agora terás de o escrever, caso contrário não descansarás.” Este texto devia ter saído no sábado, mas teria saído um café com leite amargo e, de tão quente, imbebível. Tive de dar tempo ao tempo para o deixar, naturalmente, adocicar e arrefecer, porque queria que todos o bebessem.

O segundo que colheu a vida à Emma, triturando os corações de todos os que a conheceram (como se vê, bem ou mal), multiplicou-se em sessenta segundos que colheram a nossa. Foi o minuto de silêncio mais ensurdecedor que vivi numa escola sempre tão cheia de gritos de crianças com sede de vida e fome de viver. Os minutos de silêncio são sempre ensurdecedores, mas aquele foi especialmente barulhento, ouvindo-se o som do riso, do discurso e da voz que não mais se ouviria.

E, vendo-a naquela fotografia rodeada de flores aparentemente radiantes de raiz murcha, nelas me encontrei repetidamente refletida, apercebendo-me de como o tempo voa e de como eu desejava que ele nos tivesse levado, a todos, às mesmas décadas da vida, à medida que via aqueles balões brancos voando dispersos pelo céu.

E, vendo-a como aquilo que ela era, uma de nós, vi-me a correr no recreio, a ignorar o tocar da campainha, a esfolar um joelho, a importunar uma vigilante (como de certo ela não faria porque apesar de tudo tinha um ar menos tramado do que eu), a brincar “ao lencinho vai na mão” – e ia, ah como ia – o lencinho na minha mão, humidificado não sei se pela saudade, se pelo passar do tempo.

Dei por mim a agradecer. Por ter decidido estar presente, por ter regressado a casa, por ter reencontrado tantos colegas. Pelo pôr-de-sol alaranjado sob o qual tantos se juntaram para celebrar a vida. Com todas as coisas que exigem uma celebração, entre copos, balões, melodias e pessoas, abraçadas, rindo, sorrindo e brincando, recordando momentos que partilharam e que nunca mais lembrariam se não houvesse quem fosse capaz de as juntar, na mesma cidade, no mesmo dia e na mesma hora, como tu fizeste Emma. Porque foste injustamente tu, Emma. Ah, mas como podia ter sido qualquer um de nós.

Fomos como linhas perpendiculares que lamentavelmente se encontraram e, no mesmo momento, se despediram, seguindo o seu rumo sem que a infinidade finita lhes permitisse reencontrarem-se de novo. As linhas perpendiculares têm o sabor agridoce de nos darem a saber aquilo que não mais encontraremos, mas apresentam-nos a felicidade antes de nos brindarem com a tristeza. Diferentemente, por mais ideais que pareçam umas para as outras, as linhas paralelas nunca se encontram, simetrizando a ausência de dor e a ausência de alegria.

Ora, entre sofrer por sofrer e sofrer por não poder sofrer, pelo menos que se opte pelo sofrimento que vale a pena. E somos gratos! Todos, inclusive eu. Porque somos pessoas e não números, únicas e irrepetíveis – e os outros, que não interessam porque são os outros – nem sequer te deram nome. Noticiaram a tua morte, mas esqueceram-se de noticiar a tua vida. Hoje, certa de que o tarde vem depressa, cedo – e cedo – concedo o teu nome à eternização de um mero café com leite que te convido a beber comigo.

 

A ti, Emma. Este é teu. Obrigada.