“Ficava muito exposta em certas figuras”

Durante anos o corpo feminino tem sido usado como uma ferramenta de atração para patrocinadores no mundo do desporto. Com a denúncias de atletas, pode estar a chegar ao fim.

«Sei que há desconforto por parte de atletas quando a rotina acaba e o treinador lhes dá uma palmada no rabo, ou as abraça e mete a mão no peito», conta ao Nascer do SOL Renato Lourenço, treinador de ginástica de Trampolins.

Dia 18 de julho, a seleção feminina de andebol de praia norueguesa disputou em Varna, na Bulgária, contra a seleção espanhola, o jogo para apurar o 3.º e 4.º lugar do campeonato europeu da modalidade. Esta informação, por si só, não parece ter qualquer conteúdo que a torne polémica. No entanto, dias depois, a atitude tomada pelas norueguesas nesse mesmo jogo deu a volta ao globo: as atletas recusaram usar as habituais cuecas de biquíni, tendo optado por calções.

A atitude aconteceu após a Noruega ter pedido à Federação Europeia de Andebol para que as suas jogadoras pudessem jogar de calções, em vez da «parte de baixo de biquíni», que não deve ter mais de 10 centímetros de lado, de acordo com o Regulamento da Federação Internacional de Andebol. Para a seleção masculina, contudo, as regras são bastante diferentes, sendo que os homens têm de usar uma camisola sem mangas e calções que não devem ser mais de 10 centímetros acima do joelho.

A resposta ao pedido foi negativa, tendo ainda a a Federação Norueguesa sido informada que qualquer quebra de regras resultaria numa multa.

E assim foi. No dia após o jogo a comissão disciplinar do Euro 2021 de Andebol de Praia emitiu um comunicado onde anunciava que tinha lidado com um «caso de equipamento impróprio» no jogo supramencionado, uma vez que a «equipa da Noruega jogou com calções que não estavam de acordo com o regulamento de equipamento de atletas definidos nas Regras de Jogo do Andebol de Praia da IHF (Federação Internacional de Andebol)». A equipa viu-se então obrigada a pagar 1500 euros de multa (150 por casa jogadora) por não ter jogado de cuecas.

Kare Geir Lio, presidente da Federação da Noruega de Andebol, declarou ao Washington Post que existem várias jogadoras que não consideram o modelo prático, uma vez que têm de realizar movimentos atléticos e que o facto de o equipamento ser composto por cuecas é um fator que dificulta o recrutamento de atletas para o andebol de praia. A Federação Portuguesa de Andebol recusou tecer comentários sobre o caso, apesar de o país também ter marcado presença na competição.

Mais recentemente, nos Jogos Olímpicos, foi a vez de ginastas alemãs decidirem usar um fato diferente do habitual. Sarah Voss, Pauline Schäfer, Elisabeth Seitz e Kim Bui decidiram usar um maiô unitard, que cobre as pernas até ao tornozelo em vez dos habituais maiôs, semelhantes a um fato de banho (leotard).

«Quando estás a crescer, enquanto mulher, é bastante difícil acostumares-te ao teu novo corpo, de certa forma. Queremos ter a certeza de que todas se sentem confortáveis e mostrar que podem usar o que quiserem e parecerem fantásticas e sentirem-se fantásticas com um leotard curto ou longo», explicou a atleta Sarah Voss.

A ginasta norte-americana Simone Biles apoiou a posição tomada pelas colegas: «Apoio a decisão de elas usarem o que as faz sentir confortáveis. Usar leotard, ou não, é decisão de cada uma».

Nem outra coisa seria de esperar da atleta de 1,42m, ela que também sentiu o seu corpo demasiado exposto e inclusive abusado. Em 2018, Simone Biles foi uma das muitas atletas que deu a cara e assumiu que tinha sido vítima de abuso sexual por parte do médico da seleção americana de ginástica Larry Nassar. No documentário da Netflix de quase duas horas Athlete A, são revelados centenas de abusos cometidos dentro da comunidade gímnica americana.

A luta contra o fim da sexualização do corpo feminino tem vindo a ser travada um pouco por todo o mundo, porém, quando quem sexualiza é uma pessoa com a qual a vítima tem confiança, torna-se mais complicado de fazer a denúncia. É isto que acontece dentro de comunidades, em que geralmente toda a gente se conhece, nem que seja de vista.

 

Em Portugal

Renato Lourenço, treinador de 25 anos e atleta desde criança, adianta que desde tenra idade que vê serem feitos comentários aos corpos das atletas. «Quando tinha 14, ou 15 anos os rapazes comentavam os corpos das raparigas, é normal», afirma. No entanto, a verdade é que deixa de ser tão normal quando quem comenta o corpo de jovens na puberdade são adultos.

«Já vi em competições treinadores a tocarem nas atletas, olhar para os pais nas bancadas e perceber que não gostaram muito do que viram», admite o treinador. «Há que saber fazer a distinção entre um toque necessário, porque é claro que há situações em que se eu não tocar na atleta ela magoa-se, e um toque com segundas intenções», acrescenta.

No entanto, essa distinção nem sempre é fácil de fazer para quem não sente na pele, e quem sente, «muitas vezes, não conta ou porque não tem coragem, ou porque gosta tanto da modalidade, que vê nela um escape da realidade e não quer acreditar que tem ali mais um problema».

Joana Alves tem 20 anos e é atleta de Ginástica Para Todos (GPT) no Ginásio Clube Português. A_jovem, que é atleta desde os seis anos afirma ao Nascer do SOL que, apesar de nunca se ter sentido sexualizada com o seu fato, na altura em que fez ginástica acrobática de competição, «ficava muito exposta em certas figuras» e não se sentia bem. Há dois anos que Joana e as colegas optaram por usar fatos completos e admite que desde aí, sempre se sentiu «muito mais resguardada e segura».

A ginasta de trampolins Sofia Almeida Vala, de 17 anos, conta que, tal como aconteceu com as atletas alemãs, na puberdade começou a sentir algum desconforto com o facto de usar um fato tão justo e reduzido uma vez que nessa idade as jovens vão «ganhando inseguranças com o corpo».

 

Patrocínios

Apesar de existir uma abertura cada vez maior para as atletas reportarem situações que as deixam desconfortáveis, a verdade é que há ainda um longo caminho a percorrer para que a prioridade no desporto seja o bem-estar das desportistas.

O diretor do Instituto Português de Administração e Marketing (IPAM) e especialista em marketing desportivo Daniel Sá lembra que a primeira vez que se ouviu falar de um caso semelhante (embora ao contrário) «foi há cerca de 20 anos com o voleibol feminino, quando o equipamento deixou de ser composto por uma camisola e uns calções mais largos e passou a ser por roupa mais justa». O marketeer salienta que, na mesma altura, foi feita a mudança no voleibol de praia «em que se passou a jogar de biquíni, literalmente».

Daniel Sá explica ao Nascer do SOL como o desporto também é um espetáculo que «está inserido na categoria do entretenimento e disputa tempo de antena, atenção, número de espetadores, audiências e a atração de patrocinadores». Desse modo, as modalidades «vão fazendo, umas de maneira mais arrojada, outras menos, tudo aquilo que está ao seu alcance para se tornarem mais atrativas».

E não há dúvida de que mulheres com pouca roupa atraem a atenção dos telespetadores – maioritariamente masculinos – e, consequentemente, de patrocínios. Uma prova flagrante disso mesmo é a Extreme Football League (inicialmente denominada por Legends Footbal League – LFL) – também conhecida como Lingerie Football League: um desporto em que mulheres jogam futebol americano de biquíni e de ligas. A Liga foi criada em 2009 e desde então que é considerado um desporto nacional nos Estados Unidos da América. Anos mais tarde, a LFL anunciou Ligas no Canadá, na Austrália e em vários países da Europa.

Concluindo, Daniel Sá considera que o desporto está em competição, não apenas entre si mas também, com «a indústria da música, da moda e do cinema», tendo vindo, nos últimos anos, a tomar «algumas medidas que vão no sentido dessa espetacularidade e o corpo feminino é claramente uma ferramenta que as modalidades vão usando dentro dessa estratégia».