O direito de ser criança

Como ganharíamos também alguns de nós se arriscássemos deixar os nossos filhos saírem de trás das saias e lançarem-se na brincadeira desgarrada da infância

No outro dia numa loja presenciei uma cena curiosa. Enquanto dois irmãos acompanhados pela mãe se divertiam à brava correndo atrás um do outro e atirando-se para o chão livremente, um outro da mesma idade, sozinho atrás das saias da mãe, espreitava divertido o que eles faziam. Sempre que se ria, a mãe puxava-o, escondendo-o atrás dela. Quando acabou de pagar, a mãe do menino mais tímido lançou um olhar reprovador às outras crianças. Até que, sempre com o filho bem agarrado pela mão, não fosse ele querer lançar-se à brincadeira, se despediu dos outros miúdos com um «Até qualquer dia».

É comum vermos adultos que, sem se aperceberem, acabam por reprimir as crianças, afastando-as daquilo que lhes é mais genuíno e lhes dá mais prazer. A brincadeira, os gritos, as gargalhadas desmedidas, os movimentos rápidos ou o choro compulsivo são comportamentos barulhentos que embaraçam e incomodam os mais velhos. Quem chora tem de parar rapidamente de chorar, quem grita de alegria ou de dor tem de conter o grito, quem corre tem de estar quieto. As crianças são muito engraçadas, mas só enquanto são feitas à medida dos adultos: silenciosas, paradas, contidas, controladas e pacientes. Ou seja, espera-se que sejam tudo o que é característico num adulto. No fundo, de crianças podem manter apenas o aspeto e o tamanho. Não será alguma arrogância acharmos que nós é que sabemos como uma criança deve ser, quando ela nos mostra constantemente como é genuinamente e nós o negamos?

É ainda na infância, através da resposta dos pais e mesmo logo desde os primeiros tempos, consoante a disponibilidade de quem cuida, que os mais pequenos sentem que têm espaço para continuarem a ser quem são e a desenvolverem-se livremente, ou, pelo contrário, se veem forçados a abdicar do seu verdadeiro eu, para começarem a ser aquilo que esperam deles. Agem como é suposto, em vez de agirem como gostariam ou como lhes seria natural. E ao longo do tempo vão passando a ser como acham que os outros gostariam de os ver. É um papel exigente, sempre atento, que custa uma vida de engano. Que acarreta perda de espontaneidade, autenticidade e originalidade. E esconde atrás de si vergonha, insegurança, culpabilidade e muitas vezes se pode vir a traduzir numa máscara de arrogância e superioridade.

Mais tarde é difícil resgatar o eu verdadeiro e sacudir as capas que se foram formando ao longo dos anos.

Como ganharia quem vive demasiado preocupado em agradar se mantivesse a sua espontaneidade, a sua vontade, a sua verdadeira maneira de ser, sem receio. Se pudesse deixar de viver para agradar, refém da crítica, do olhar ou do desejo do outro. 

Como ganharíamos também alguns de nós se arriscássemos deixar os nossos filhos saírem de trás das saias e lançarem-se na brincadeira desgarrada da infância. A brincadeira que depois já não volta da mesma maneira, mas que pode levar até aos últimos dias a uma vida muito mais livre, mais genuína, espontânea, saudável e prazerosa.