Vidas de cães. “O cachorro é um ser humano como qualquer outro!”

De uma forma ou de outra, entraram para a História porque a História não se reduz ao homem. Uns voaram pelo espaço, outros salvaram vidas; uns serviram fielmente os donos até à morte, outros ficaram amarrados ao sentido de humor. Algo que, afinal, também um cão pode ter

Stanislaw Ponte Preta não se chamava Stanislaw Ponte Preta: era mais prosaicamente Sérgio Porto. Sérgio Marcus Rangel Porto, de nome completo, cronista, escritor, dramaturgo, homem da rádio e funcionário do Banco do Brasil. Ser funcionário do Banco do Brasil, assim de repente, não parece ter graça nenhuma. Mas Stanislaw, como gostava de assinar as suas prosas, tinha muita graça. Era um humorista de mão cheia. Certa vez saiu-se com esta, depois de saber que um membro do governo brasileiro, tinha utilizado a sua viatura oficial para levar o cão ao veterinário: «Qual o problema? Afinal o cachorro é um ser humano como qualquer outro!». A frase ficou. Tal como a de Vinicius de Moraes: «O whisky é o melhor amigo do homem. O whisky é o cachorro engarrafado!».

O melhor amigo do homem é, por vezes, mais famoso do que o próprio homem. E tem mais graça. Vejam o Snoopy, o cão de Charlie Brown, esse personagem com mais problemas psicológicos do que qualquer versão cinematográfica de Woody Allen, trazido para as tiras de banda desenhada por Charles Schultz. Snoopy tem raça: é um beagle. Apareceu pela primeira vez no dia 4 de Outubro de 1950. E tem graça. Muita: sobretudo quando se deita a filosofar no teto da sua casota, ou fica sentado a bater as teclas da sua máquina de escrever na esperança de concluir um livro macabro que começa com «Estava uma escura e tempestuosa noite…». Já para não falar de quando põe o capacete e o cachecol e usa a casota como avião para abater o Barão Vermelho, acabando sempre abatido. 

Não sei se Snoopy é o mais famoso canídeo da banda desenhada. Afinal existe Pluto, o cão de Mickey Mouse, de Walt Disney, que nasceu vinte anos antes dele, em 1930. Também tem raça: é um bloodhound. Mas uma graça muito relativa. Além de mudo, limita-se a fazer os disparates simples que qualquer cão faria. Vá lá, desenvolve expressões faciais. Mas, convenhamos, é um boneco animado e, como tal, é fundamental que se anime.

Scooby Doo, de Hanna-Barbera, também é um cachorro não engarrafado mas animado. Um dogue-alemão cobarde como é raro ver num bicho de quatro patas, passa a vida atrás de um grupelho de adolescentes armados em detetives e que vasculham florestas sombrias, casas assombradas e grutas escuras para seu contínuo arrepio. O melhor da sua vida artística foi quando Frank Sinatra, de repente, resolveu encaixar um solo curioso no final de Strangers in the Night: «Dooby dooby doo». Williaam Hanna e Joseph Barbera não perderam a deixa e deram-lhe, em 13 de Setembro de 1969, o nome de Scooby Doo. Ninguém sabe, até hoje, se Sinatra gostou ou não da brincadeira. Mas pouco importa: Sinatra já morreu e Scooby Doo continua vivo e cheio de medo da sua própria sombra.

A estrela de Rin Tin Tin

Toto foi, provavelmente, a primeira estrela canina do cinema. Provocou uma das deixas mais famosas da história da sétima arte quando Dorothy, a pequena heroína de O Feiticeiro de Oz, o filme de 1939 realizado Victor Fleming sobre o livro de L. Frank Baum: «Toto, I’ve got a feeling we’re not in Kansas anymore». Tal como Dorothy era Judy Garland, Toto era, na vida real, Terry, um cachorrinho abandonado ainda bebé e adotado por Carl Spitz que, talvez não por acaso, era o treinador de cães em Hollywood. Viveu 11 anos e sempre a trabalhar: entrou em mais de 17 filmes, embora não se tratasse propriamente de uma beleza em forma de cão.

Mais elegante, certamente, era o pastor-alemão que foi encontrado no dia 15 de Setembro de 1918 perdido nas planícies de França devastadas pela I Grande Guerra. Quem o adotou foi um soldado americano chamado Lee Duncan. Mas, na verdade, Duncan não encontrou apenas esse cãozinho recém-nascido: encontrou também a mãe e o resto da ninhada. Distribuiu-os pelo regimento e ficou com uma fêmea, Nanette, e com um macho, Rin Tin Tin. Não fazia a mínima ideia de como o nome se tornaria famoso. Rinty, por diminutivo, era um ginasta de excelência: saltava a alturas impressionantes e aprendeu truques que muitos artistas de circo não conseguiam imitar. Charles Jones, diretor em Hollywood, não tardou a saber das habilidades do animal e convenceu Duncan a fazer filmes em que Rin Tin Tin surgia como protagonista, o primeiro deles representando o papel de lobo. Passou a ser uma estrela e morreu como uma estrela, nos braços doces de Jean Harlow, uma das bombas mais sexy do cinema da época.

À falta de Rin Tin Tin, outros pastores-alemães tiveram direito aos seus 15 minutos de fama numa tentativa desesperada de recriar o cão que toda a América adorava. Mas nem Ranger, nem Strongheart, nem Lightining estiveram à altura do primeiro verdadeiro cão-actor. Rin Tin Tin veio a ser homenageado pelos criadores de Lucky Luke, Morris e Gosciny, embora a expressão homenageado tenha o seu quê de venenosa. No dia 4 de Fevereiro de 1960, na revista Spirou, uma nova aventura do cowboy que dispara mais rápido do que a própria sombra, revelava Ran Tan Plan, ranhoso como sempre, cão de guarda prisional com obrigação de estar atento a qualquer tentativa de fuga dos bandidos e irmãos Dalton. Só que, ao contrário de Rin Tin Tin, Ran Tan Plan é uma anedota como cão: além de não ter faro é um dos mais estúpidos personagens que alguma vez surgiu numa história de quadradinhos ou não. Nesse aspeto há que convir que é, de facto, um ser humano como qualquer outro.

Viajando pelo espaço

Se Ivan Pavlov utilizou nas suas experiências de 1904 uma série de cães para chegar ao princípio dos reflexos condicionados, a cadela Laika foi preparada para embarcar, em Outubro de 1957, na versão que se seguiu ao primeiro satélite construído por mãos humanas, o Sputnik 1. Muito proletariamente, Laika foi apanhada a vadiar pelas ruas de Moscovo e, de certa forma, recrutada à força para algo que não faria de boa vontade. As coisas não correram bem, o voo foi só de ida, e a imprensa soviética tratou de explicar tin tin por tin tin (sem rin) que Laika havia morrido após uma semana em órbita. Mais tarde, uma nova versão surgiu, afirmando que a pobre bichinha morrera poucas horas após o lançamento com problemas de coração provocados pela humidade e a falta de condições respiratórias no espaço minúsculo em que fora enfiada.

Em Agosto de 1960, os russo voltaram a enviar cães para o espaço como se se tratasse de uma ideia fixa. Foi a vez de embarcarem Belka e Strelka no Sputnik 5. A tragédia canina parecia repetir-se quando, após a conclusão da primeira órbita (foram cinco) os cientistas que ficaram em terra repararam que não havia o mínimo sinal de movimento por parte dos dois bichos. Afinal, desta vez a viagem teve bilhete de regresso e Belka e Strelka voltaram vivas: a falta de gravidade mantivera-as em estado de paralisação.

Entramos por um campo em que os nossos amigos de quatro patas que ladram – e cão que ladra não dorme – se espalharam por toda a parte, desde a literatura juvenil, com o Tim dos Cinco e o Toy dos Sete, ambos saídos da imaginação de Enid Blyton, a misturarem-se com a inevitável Lassie, a collie de pelo longo mais popular da televisão dos anos-40 e 50, que só chegaria a Portugal nos anos-60. Lassie teve uma característica que a distinguiu, por exemplo, de Rin Tin Tin: foi múltipla. Ou seja, ao longo dos muitos episódios gravados com as aventuras dessa cadela pastora que, pelo meio das suas obrigações profissionais, salvava crianças e adultos de situações críticas como as de caírem em buracos sem saída, vários foram os intérpretes de Lassie e, na sua maioria, do género masculino.

Em 1917, quando os americanos chegaram à Europa para pôr um fim definitivo à I Grande Guerra, um terrier muito pouco puro surgiu juntamente com o 102º de Infantaria, 26ª Divisão Yankee. Stubby não era produto da imaginação de ninguém, mas tornou-se uma figura do imaginário marcial norte-americano. Ainda hoje o apelidam de grande herói canino de guerra. Tinha um faro apurado, ao contrário de Ran Tan Plan, e farejava não apenas soldados feridos mergulhados no fedor das trincheiras como a aproximação de tropas inimigas. A sua utilidade tornou-se um privilégio para o 102º de Infantaria. Sobretudo quando desmascarou um espião alemão que se fazia passar por um pacato civil francês. Bem à moda dos US of A, cobriram-no de medalhas e promoveram-no a sargento, embora eu aposte aqui mesmo, singelo contra dobrado, que o velho terrier se esteve absolutamente nas tintas para isso. 

Em 1966, poucos dias antes de ter início o Campeonato do Mundo de Futebol de Inglaterra, o cão mais famoso do mundo chamava-se Pickles. Algum malandro aproveitou-se da exposição em que a Taça Jules Rimet se mostrava aos curiosos ingleses que sonhavam ganhá-la – e ganharam – para desaparecer com ela escondida debaixo de uma gabardina. Durante sete dias, o homem-da-gabardina foi perseguido pela Scotland Yard mas foi o transeunte David Corbett que, alertado pelo seu cachorro, que andava a passear pelas redondezas, foi investigar o que tanto enervava o bicho debaixo de um arbusto. Era a taça! Pickles entrou nos noticiários de todo o mundo. Não ganhou grau de cavaleiro da rainha, mas ficou melhor servido por uma marca de comida para cães que lhe ofereceu alimento para o resto da vida.

Há cada cão…

Como cada homem é um homem, Stanislaw Ponte Preta ensinou-nos que cada cão é um cão. Um fez encher de lágrimas de comoção os que souberam da sua história. Tem estátua repetidamente visitada junto da estação de metropolitano de Shibuya, em Tóquio. E outra na sua cidade natal, onde esperava todos os dias, com eterna paciência, junto ao apeadeiro de comboios, que o seu dono, o professor Hirokishi Saito, regressasse do trabalho para irem juntos para casa. Hachiko, um cão da raça akita, que está à beira da extinção, continuou a caminhar diariamente para a o lugar marcado depois de o professor Saito ter morrido e tornou-se uma imagem da devoção canina elevada à décima potência, ainda por cima num país em que a lealdade é tida como uma das máximas virtudes. Hachi é a palavra japonesa para oito, de onde se depreende que terá sido o oitavo da ninhada em que nasceu. Ko significa afeição: algo que teve em grandes quantidades até morrer.

O facto é que, verdadeiros como o Charlie do escritor John Steinbeck que atravessou os Estados Unidos com ele e escreveu, depois, Viagens com Charlie, ou Balto, o huski que caminhou por mais de 1600 quilómetros nas neves do Alaska para ir entregar remédios contra a difteria às crianças reclusas pela intempérie na cidade de Nome, a caricaturas como a de H. Brian Griffin, o personagem da série Family Guy que chega ao extremo de ter um caso com a própria dona, os cachorros e os humanos como eles, parecem não saber viver uns sem os outros. Sigmund Freud, pai da psicologia moderna, acreditava que Jofi, o seu inteligente chow-chow, conseguia entender a mente humana, algo que nem nós ainda temos a certeza de ele próprio ter conseguido. A dinastia dos Gunther, atualmente no Gunther IV, é rica e snob. De pastor-alemão só tem a raça. De resto é dono de uma fortuna calculada em cerca de 380 milhões de dólares, que lhe foi deixada pelo pai, Gunther III, que por sua vez a herdou da Condessa Carlotta Libenstein em 1992. 

Não sei se isso fará dele um verdadeiro ser humano, mas sei que muitos seres humanos gostariam de estar na sua pele de cão.