No início de julho, o Governo anunciou a distribuição do contingente das 1.532 vagas do concurso de 1.ª época dos recém-especialistas nas áreas hospitalares (1.041), de Medicina Geral e Familiar (459) e de Saúde Pública (32). Para a primeira especialidade, existiam 320 vagas na região de Lisboa e Vale do Tejo (LVT), no entanto, prevê-se que destas mais de metade ficarão por preencher.
Apesar de, na página do Governo, ser possível ler que «este concurso representa a maior evolução do número de vagas nos últimos anos, com um aumento de cerca de 10,6% dos postos de trabalho em relação ao ano passado», sendo que «se compararmos com o concurso de 1.ª época de 2016, o acréscimo de vagas é superior a 40%», tal não significa que a população possa contar com mais profissionais de saúde que possam dar resposta às suas necessidades ao nível dos cuidados primários.
«A nível nacional, houve cerca de 180 vagas que não foram ocupadas, a maioria em LVT. Tem sido esse o padrão nos últimos quatro anos, infelizmente», começa por explicar Jorge Roque da Cunha, secretário-geral do Sindicato Independente dos Médicos (SIM). «O número de pessoas que se reformaram, cerca de 1300 médicos de Medicina Geral e Familiar, nos próximos três anos, vão juntar-se a um número imenso e não quantificável que perderam a rescisão de contrato fruto da incapacidade do Ministério de fixar os seus profissionais», denuncia.
O dirigente do sindicato, desde 2012, e recentemente eleito para um mandato de mais três anos, salienta que, desde o passado mês de maio, pelo menos 100 destes profissionais pediram a rescisão. «São pessoas que vão para o setor privado ou para o estrangeiro. O Ministério conhece o problema e a resposta é que abriram um concurso para 430 pessoas. É uma não resposta porque, como verificamos, não é possível dar um médico a todos os utentes e o número das pessoas que saem é superior àquele que fica», constata o médico em Camarate que, no fim de julho, em entrevista ao i, explicou que «cerca de um quarto dos portugueses, três milhões de portugueses, todos os dias não têm médico de família disponível».
«O Ministério só não quer encarar o problema como não se reúne com os sindicatos. Estamos a falar de médicos especialistas que recebem 1800 euros limpos. Se os médicos do Norte, onde há excesso de recursos humanos, vierem para Lisboa, não podem pagar 1000 euros de renda», diz, referindo-se ao facto de que, em abril, a região de LVT era aquela onde mais faltavam médicos de família. Segundo os dados disponíveis no site BI-CSP do Serviço Nacional de Saúde (SNS), quase 620 mil dos 865.734 portugueses sem médico de família atribuído residiam nessa região, sendo que o número corresponde a 16,4% do total de utentes em LVT. Por outro lado, entre as cinco regiões de Portugal continental, o Norte era aquela onde a percentagem de portugueses sem médico era menor (2,5%). Já o Algarve era a segunda com a situação mais grave, com 6,8% do total de utentes inscritos. A seguir vinha o Alentejo, com 6,3% dos cidadãos aí residentes sem o acompanhamento de um médico de família e, por último, o Centro, com 4,8%.
A percentagem de cidadãos sem médico de família tem vindo a crescer desde 2018, ano em que foi registado o valor mais reduzido. O valor apurado há quatro meses (865.734, isto é, 8,4% do total de utentes nacional) era ligeiramente superior ao do ano passado, mas não tão grave quanto o mais de um milhão registado em setembro de 2020. Os dados veiculados pelo SNS, em junho, indicavam que o número de cidadãos sem médico de família era o mais elevado desde julho de 2016, pois, no final desse mês, eram 1,057 milhões, mais 19,5% que em junho de 2020 (+206 mil) ou mais 32,5% (+259 mil) que em junho de 2019, ou seja, o período que antecedeu o surgimento do novo coronavírus.
«O Governo prefere olhar para a TAP, onde enterrou cerca de 3 mil milhões de euros sem autorização da União Europeia, ajudar bancos como o BES. É recorrente e nada é feito. No Agrupamento de Centros de Saúde Oeste-Norte, desde maio, seis médicos – num universo de 80 – pediram para sair», exemplifica Roque da Cunha, recorrendo ao panorama do agrupamento que cuja área de influência corresponde aos concelhos de Alcobaça, Bombarral, Caldas da Rainha, Nazaré, Óbidos e Peniche. Já em fevereiro passado, a agência Lusa dava conta da sobrecarga de trabalho destes profissionais, salientando que «o rastreio e vigilância de casos suspeitos e doentes com covid-19 e a prestação de cuidados nas áreas respiratórias intensificaram o trabalho nos Centros de Saúde do Oeste, onde apesar da pandemia, se ultrapassaram as 600 mil consultas».
«Aquilo que acontece na Medicina Geral e Familiar vai acontecer nos concursos hospitalares. Do Hospital Garcia de Horta, em Almada, saíram três médicos de Medicina Interna na semana passada. Nenhum deles recebeu sequer um telefonema por parte da entidade empregadora. O próprio Ministério não quer saber dos profissionais que contrata e isto demonstra uma total irresponsabilidade porque nada acontece», avança Roque da Cunha, constatando que «nunca como agora os privados cresceram tanto e os países nórdicos foram tão agressivos na contratação de médicos». Exemplo da emigração de médicos é o caso de um profissional que, há duas semanas, decidiu emigrar para o Luxemburgo para auferir cerca de 8.000 euros. «Isto acontece porque o Estado despreza completamente os médicos de família».
Milhões de horas extraordinárias
De acordo com os dados disponibilizados no Portal da Transparência do Ministério da Saúde, que o jornal i analisou, até junho foram feitas quase 11,5 milhões de horas de trabalho extraordinário no SNS, mais 41% do que no primeiro semestre de 2020. O maior aumento da carga de trabalho para os profissionais, que por lei têm de fazer até 200 horas de trabalho suplementar por ano no caso dos médicos e 150 horas no caso dos enfermeiros, verificou-se nos primeiros três meses do ano, em que foram feitas mais do dobro das horas extra do que seria um primeiro semestre «normal», usando por comparação 2019 e 2020. Ainda assim, no segundo semestre continuou a verificar-se um aumento de trabalho extraordinário face ao que eram os valores pré-pandémicos e, mantendo-se este ritmo, 2021 poderá superar o volume de trabalho suplementar de 2020.
«Em 2019, foram perto de 7 milhões de horas extraordinárias, no ano passado 9 milhões e este ano serão mais com cada vez menos condições. Não investindo nos salários, nas infraestruturas e nos equipamentos, as pessoas têm menor motivação e maior vontade de sair», adianta, apontando que cerca de 1300 médicos de família não se encontram, atualmente, nos centros de saúde nem nas unidades de saúde familiar por terem sido mobilizados para outras tarefas como a vacinação. Esta decisão governamental tornou o panorama, que já era gritante, ainda mais merecedor de atenção porque, em janeiro de 2013, verificou-se um aumento da dimensão das listas de utentes dos médicos de família de 1500 para 1900 utentes, ou seja, ocorreu um aumento de 27%. Como também se deu um aumento de 22% na percentagem de utentes utilizadores, em prática, esse ano marcou o aumento de 55% do número de utentes na lista dos respetivos médicos. «É impossível dar conta do recado».
Ainda que no site oficial do Governo se leia que «procura dotar a rede pública de serviços de saúde de pessoal médico, procurando, em especial, contemplar nesse reforço os serviços e estabelecimentos de saúde do SNS que, por serem mais periféricos, se debatem com carências», Rui Nogueira, antigo presidente da Associação Portuguesa de Medicina Geral e Familiar, garante que o caso de LVT comprova que «não tem capacidade de absorção de todos os médicos e nem sequer existem estes especialistas na região».
«Ter-se-iam que deslocar muitos médicos para que fosse possível utilizar todas essas vagas. A grande questão é que ao longo dos anos o problema é o mesmo. Não se dá condições e teriam de ser excelentes em termo de exercício da profissão para que os jovens fossem atraídos a ficar», diz, dando o exemplo dos especialistas que vivem noutras cidades e têm de despender muito mais dinheiro, ao final do mês, em variadas despesas e, muitas das vezes, ficar longe da família. «Principalmente, para quem tem filhos, ir para uma cidade sozinho ou mudar-se com a família sem perspetiva de voltar à cidade de origem ou a uma mais perto de onde é natural é muito difícil» e, pelos motivos destacados, tem de se fazer uma intervenção a médio e longo-prazo no próprio ingresso nas instituições de Ensino Superior. «Metade das faculdades estão a Norte do Porto. Na região Centro há duas e a Sul há outras duas. Poderá haver uma correção destas assimetrias regionais no primeiro ano pós-licenciatura para ajustar a quantidade de vagas». A título de exemplo, segundo dados disponíveis para consulta num despacho de 1 de julho do Gabinete do Secretário de Estado Adjunto e da Saúde, a Administração Regional de Saúde do Norte oferece 81 postos de trabalho e a Administração Regional de Saúde do Centro 72, valores muito inferiores ao de LVT.
«Se abrirmos sempre um excesso de vagas, haverá sempre uma grande percentagem de colegas que têm de vir de outras regiões. As vagas menos escolhidas são sistematicamente deixadas para o fim e não são ocupadas porque todos conseguem ficar fixados nos lugares mais atrativos. E depois há locais onde abrem 10 vagas e ficam 10 por ocupar». Por meio da análise do despacho, é possível entender que existem zonas do país com poucas vagas, como a Unidade Local de Saúde Nordeste, com quatro, ou a Unidade Local de Saúde da Guarda, com três.
«A ponderação das listas tem de contar com a localização da unidade. Pode haver mais ou menos trabalho. Esta condição de trabalho na unidade pode ser um fator de atracão ou de evitamento. Não podemos pensar só na remuneração, mas também nas condições de trabalho», acrescenta, aludindo às zonas do país com mais pobreza ou população envelhecida que, consequentemente, são consideradas mais árduas. Por fim, o médico de família na região de Coimbra e Coordenador de Internato de Medicina Geral e Familiar da Região Centro alerta para o facto de que «há vagas que são ocupadas teoricamente, mas não na prática» porque muitos dos profissionais desistem de exercer em determinado centro de saúde ou unidade de saúde familiar, podendo ser penalizados e estar impedidos de se candidatarem ao concurso do ano seguinte.