Uma notícia deste jornal de há oito dias dava conta de que um concurso para médicos de família do SNS não teve sequer metade das vagas preenchidas.
O jornal concluía, com meridiana lógica: médicos fogem do SNS para o setor privado.
E a procissão ainda vai no adro.
A menos que o Estado injete quantias brutais no SNS, pagando aos médicos e aos enfermeiros o mesmo que o privado paga, e dando-lhes condições de trabalho semelhantes, a pouco e pouco eles cada vez mais emigrarão para os hospitais privados.
Só os que não tiverem alternativa ficarão no SNS.
E o sistema ir-se-á degradando.
Por outro lado, multiplicam-se os hospitais privados.
A título de exemplo, só nos últimos tempos surgiram na zona ocidental de Lisboa duas novas grandes unidades de saúde privadas: um enorme hospital da CUF em Alcântara e uma ampliação do Centro Champalimaud em Pedrouços, para aproximadamente o dobro do tamanho.
Ora, o que significa isto?
Que cada vez há mais pessoas a recorrer à medicina privada – e consequentemente a fugir do SNS.
Só os que não podem continuam agarrados aos hospitais do Estado.
Hoje, salvo situações de urgência, quase só os pobres vão para os hospitais públicos; para a classe média, o SNS serve sobretudo para fazer análises e exames médicos, pelos quais os pacientes pagam uma ninharia.
A fuga de médicos e de doentes do SNS para o setor privado começa a tornar evidente uma coisa: tendemos para a existência de uma saúde para ricos e outra para pobres, como já há uma escola para ricos e outra para pobres.
Anacronicamente, em democracia, a estratificação social no ensino é muito maior do que era no tempo da ditadura.
Eu e os meus irmãos sempre andámos na escola primária do Estado, no liceu do Estado, na universidade do Estado.
E com quase toda a gente do nosso meio social acontecia o mesmo.
Na classe média, só os maus alunos iam para o colégio oficial.
Hoje passa-se o contrário: quase toda a gente da classe média tem os filhos na escola privada; na escola oficial estão os piores alunos e os filhos dos pobres.
E na saúde vai passar-se o mesmo.
O lema ‘um serviço de saúde universal e gratuito’ podia ter a melhor das intenções mas terá consequências desastrosas.
Já está a ter.
Há uma ilusão enorme quando se fala num sistema de saúde gratuito.
Nada é gratuito; um serviço ‘gratuito’ significa apenas que o Estado cobra mais aos contribuintes para investir nesse setor.
Ora, a menos que sejam investidas na saúde quantias gigantescas, exigindo um esforço ainda maior aos cidadãos, o SNS não conseguirá reter os melhores profissionais nem sequer será sustentável a prazo.
Nestas condições, o Serviço Nacional de Saúde tem de começar a ser em boa parte financiado pelos utentes.
Só por razões ideológicas e por medo (os principais partidos não ousam levantar ondas num setor tão sensível como a saúde) continua a insistir-se na ideia de um SNS gratuito.
Não faz sentido que quem pode pagar uma consulta ou um exame não os pague; gratuitos só deveriam ser para quem não pode de todo pagar.
Tenho amigos com posses que se sentiram constrangidos ao ver o custo altíssimo dos exames médicos que haviam feito – face à quantia ridícula que tinham pago.
E há depois aquelas pessoas que vão aos médicos de família pedir (quase exigir) exames que não se justificam.
Se os exames fossem pagos consoante as possibilidades de cada um, estas situações desapareceriam.
Numa sociedade bem organizada, o princípio mais saudável é sempre o do utilizador-pagador.
É o que aproxima mais um sistema social da realidade.
Quanto mais uma sociedade se afasta deste princípio, mais artificial se torna.
Quanto mais serviços gratuitos existirem – mais transportes gratuitos, mais escolas gratuitas, mais livros gratuitos, mais saúde gratuita, mais vacinas gratuitas, etc., etc. – mais uma sociedade se afasta do real.
Porque deixa de funcionar ‘por si’ para ser orientada por burocratas: o Estado suga os cidadãos até ao tutano com impostos – e depois distribui o dinheiro de acordo com os seus critérios, como se oferecesse benesses às pessoas.
E quanto mais artificial uma sociedade é, menos dinâmica se torna; mais definha, enquanto o poder dos burocratas aumenta.
Este é cada vez mais o drama português.
Que a não ser invertido nos conduzirá rapidamente à cauda da Europa.
P.S. – No último texto desta coluna cometi um lapso: disse que Correia de Campos é o presidente do Conselho Económico e Social, quando este foi há um ano substituído por Francisco Assis – até aí, um dos principais críticos de António Costa no PS. Desde a sua nomeação, porém, Assis calou-se. Se calhar tinha de o fazer. Mas é mais uma prova de que quem quer manter a sua independência não pode aceitar cargos de nomeação política. Por outro lado, é mais um caso típico da gestão que António Costa faz do poder: oferece lugares aos críticos para os silenciar.