O renascimento de Val Kilmer

Depois de um longo período afastado das luzes da ribalta por causa de um cancro na garganta que o deixou durante quatro anos impedido de falar, o ator está a ter um ano em grande. Um documentário, uma sequela de Top Gun e um dispositivo que lhe vai permitir recuperar a voz são as novidades…

Quando o leitor pensa em Val Kilmer, qual é a primeira imagem que lhe vem à cabeça? Será que é no Top Gun, no papel de Iceman, o piloto giraço rival de Tom Cruise? Ou se calhar é a imitar uma caricatura do Jim Morrison no filme dos The Doors, realizado por Oliver Stone. Até pode ser no fato de Batman, no mal-amado filme de Joel Schumacher, Batman Forever.

O mais provável é que essa imagem esteja bastante afastada de como Val Kilmer se encontra atualmente.

Em 2017, o famoso ator, que apareceu em filmes como Tombstone, Kiss Kiss Bang Bang ou Heat, enfrentou uma longa batalha contra um cancro na garganta que o deixou impossibilitado de falar ou de comer, obrigando-o a alimentar-se através de um tubo.

Durante muito tempo, Kilmer não ofereceu grandes pormenores sobre esta doença e permaneceu escondido do olhar do público, mas, recentemente começaram a ser publicados materiais autobiográficos que exploram a vida e mente do ator.

Em 2020, Kilmer escreveu o livro de memórias I’m Your Huckleberry: A Memoir e, este ano, estreou no Festival de cinema de Cannes um documentário sobre a vida do ator californiano, com uma quantidade quase infinita de gravações caseiras feitas pelo próprio ao longo da sua vida, e um olhar íntimo sobre a sua luta contra o cancro.

Realizado por Leo Scott e Ting Poo, o documentário revela o caminho até ao superestrelato de Val Kilmer, um dos maiores sex symbols de Hollywood, e as condições frágeis em que o ator está agora a viver.

Uma infância tudo menos normal

Val Edward Kilmer nasceu no dia 31 de dezembro de 1959, em Los Angeles, no solarengo estado da Califórnia, e passou a sua infância numa casa perto do rancho do ator Roy Rogers, onde muitos westerns foram filmados. A sua família, porém, pouco ou nada tinha a ver com cinema.

O seu pai, Eugene Dorris Kilmer, era distribuidor de equipamento aeroespacial, a sua mãe, Gladys Swanette, passou por vários trabalhos, como publicitária, e o seu avô trabalhava em minas de ouro no Novo México. A sua infância foi tudo menos a mais normal.

«Os meus irmãos e eu fomos introduzidos ao estilo de vida hippie pelo nosso ‘babysitter’, que foi contratado pelo nosso pai porque conduzia um Mustang descapotável e estudava artes na Universidade do Estado da Califórnia em Northridge», contou à Vanity Fair, em 2020.

«O meu pai não devia saber que ele era tão radical, por isso, nenhum assunto estava fora de limites. Agora, olho para trás, com algum conservadorismo parental, e fico boquiaberto com a forma como eram descodificadas as músicas rock ‘n’ rol ou a educação sexual direta que miúdos de 10, 9 e 7 anos estavam a receber», recordou o ator.

A relação especial que Kilmer tinha com os seus irmãos está diretamente ligada com a sua paixão pelo cinema, nomeadamente com Wesley, o mais novo da família, que realizava os remakes caseiros dos filmes favoritos da família protagonizados por Val.

No entanto, foi a tragédia que empurrou o ator para se tornar profissional. Quando Wesley tinha 15 anos, sofreu um ataque epilético e acabou por morrer na piscina da família. «O meu confidente desapareceu e a minha família nunca mais foi a mesma», diz Kilmer no documentário.

De Top Gun a Jim Morrison

Depois deste traumático acidente, o aspirante a ator mudou-se para Nova Iorque para tirar um curso de representação e acabou por ser aceite na aclamada Juilliard, uma escola de Ensino superior de Música, Dança e Dramaturgia, tornando-se a pessoa mais jovem de sempre a ser aceite nesta instituição.

Apesar de inicialmente estar mais focado numa carreira para o teatro, viria a receber o seu primeiro papel no cinema em 1984, como protagonista do filme Top Secret!, uma comédia sobre um músico de rock ‘n’ roll que se torna espião durante a II Guerra Mundial.

Mas o ‘grande’ papel que iria catapultar Kilmer para a elite de Hollywood seria o icónico Top Gun, o filme de pilotos de avião, lançado em 1986, realizado por Tony Scott. A interpretação de Iceman é uma das mais famosas da carreira do ator, mas este quase o impediu de protagonizar Blue Velvet, um dos filmes mais aclamados de David Lynch.

Kilmer não estava muito interessado no Top Gun, considerando o guião original do filme um pouco «pateta», mas foi quase «obrigado» a aceitar o papel, uma vez que estava sob contrato com o estúdio. Já que tinha que desempenhar este papel, o ator entregou-se de corpo e alma. 

«Eu desempenhava, propositadamente, a rivalidade entre a personagem do Tom Cruise e a minha fora do ecrã», revelou o ator, confessando que grande parte do elenco do filme acabaria por seguir esta técnica do método.

Esta é uma das muitas histórias que compõem uma carreira de mais de três décadas. Uma delas, citada pelo New York Times, tem como cenário uma caverna de morcegos que o ator visitou durante uma visita a África em 1994. Esse foi o momento que o inspirou a ligar para o seu agente e a aceitar o papel de Batman no filme de Schumacher.

Mas esta excentricidade era apenas uma das facetas de Kilmer, que foi por diversas vezes acusado de ser «demasiado apaixonado» pela arte. O ator alegadamente não regressou para a sequela do filme do Batman, que acabou por ser protagonizada por George Clooney, depois de o realizador o ter acusado de ser «psicótico», e no casting para o filme dos Doors, onde Kilmer interpreta uma versão quase dionisíaca de Jim Morrison, onde se foca imenso nos excessos do vocalista, o ator foi acusado de ser demasiado agressivo com uma atriz no casting durante uma cena mais intensa.

Kilmer tentou esconder-se com a desculpa do «method acting», no entanto acabou por ser processado. 
«Todas estas facetas tornam complicado explicar quem foi exatamente Val Kilmer», explica Taffy Brodesser-Akner, jornalista do New York Times, reconhecendo que, «ele ainda não sabia que história é que estava a contar».

Comer ou respirar?

Val, documentário produzido pela A24, responsável por filmes aclamados como Moonlight, Midsommar ou Uncut Gems, tenta revelar todas as peças do puzzle da mente do ator e descortinar o processo de recuperação do cancro de garganta.

Apesar de, em 2016, Kilmer ter negado todos os rumores sobre problemas de saúde, no ano seguinte, o Hollywood Reporter revelou que este tinha enfrentado uma «batalha contra o cancro de garganta» durante dois anos e que, depois de uma operação na traqueia, perdeu a capacidade para falar.

«Obviamente estou muito pior do que aquilo que me sinto», diz Kilmer a certa altura do filme, com a sua voz rouca e grave. «Não consigo falar sem pressionar este buraco na minha garganta. Tive de fazer a escolha entre respirar e comer», acrescenta ainda, revelando que agora tem que ser alimentado através de um tubo.

Apesar de todas estas complicações, Kilmer não desistiu de se exprimir criativamente. O ator continua a aparecer em filmes e, este ano, irá participar na sequela de Top Gun, uma das exigências de Tom Cruise para que o filme pudesse avançar.

Este é um momento excitante para Kilmer, que, quatro anos depois, também terá oportunidade para se exprimir através da fala. O ator colaborou com uma empresa britânica especializada em Inteligência Artificial, Sonantic, que desenvolveu um modelo da voz do ator, recorrendo a diferentes clipes de áudio dos filmes de Kilmer e de amostras oferecidas pelo seu filho, Jack Kilmer.

Desta colaboração resultou um aparelho que permite simular a voz do ator que lhe permitiu discursar pela primeira vez desde 2017. 

A Sonantic, empresa que se especializa no desenvolvimento de inteligências artificiais, programou, com a ajuda de Val Kilmer, um aparelho especial que tem como objetivo simular a sua voz.

Esta tecnologia não chegou a ser utilizada no documentário, as vozes que ouvimos são, ora, de vídeos de arquivo de Val ou narrações feitas pelo seu filho, mas, agora, cria um novo mundo de oportunidades para o ator.

«Como humanos, a capacidade de comunicar está no centro da nossa existência e as consequências do cancro da garganta fizeram com que outros tivessem dificuldade em compreender-me», revelou. «A oportunidade de poder contar a minha história, com uma voz que me soa autêntica e familiar, é uma dádiva incrível», confessa.