Em 2007, quando a redação do SOL ainda era na Baixa de Lisboa, na rua de S. Nicolau, apareceu-me um dia uma senhora baixinha, bonita, com uns admiráveis olhos verdes, aparentando já uma idade respeitável, que vinha propor um projeto para o jornal. Tratava-se da publicação de cartas de amor de figuras célebres da História.
Aceitei. Não só pela ideia, confesso, mas pela pessoa da proponente. Da mulher que se propunha selecioná-las e organizá-las. Chamava-se Isabel da Nóbrega e era uma escritora conhecida e reconhecida, reputada, sensível.
Desde esse dia, vinha todas as semanas ao meu gabinete no dia estipulado entregar-me uma ‘carta de amor’ de uma personagem histórica, quase sempre estrangeira. Depois sentava-se e ficávamos uns minutos a conversar. Contou-me episódios da sua vida muito recheada. Falou-me de Saramago, com quem tinha vivido. Percebi que fora uma relação forte mas com momentos difíceis.
Por mero acaso, eu tinha testemunhado um deles, uns bons anos antes.
Pouco depois do 25 de Abril, num restaurante na zona de Picoas, onde era o ateliê onde eu trabalhava, fiquei numa mesa próxima de outra onde se sentava um casal. O homem era José Saramago, que reconheci facilmente; mas a senhora era-me desconhecida. O que se passou a seguir entre os dois impressionou-me fortemente. Saramago falava com a senhora em termos ríspidos, como se lhe ralhasse, e ela chorava. Mas ele não se condoía. Prosseguia no mesmo tom implacável. À noite, contei o episódio à minha mãe e ela disse de imediato:
– A senhora era com certeza a Isabel da Nóbrega. Conheço-a muito bem. É ela que vive com o Saramago.
Era mesmo.
A minha primeira impressão de Saramago não foi, pois, nada famosa.
Mais tarde falei com ele telefonicamente e também não houve qualquer empatia entre nós. Comentando o caso com Agustina Bessa-Luís, esta disse-me espontaneamente:
– Ele é um ingrato! Devia tratar a Isabel como uma rainha. Foi ela que o ensinou a escrever!
Não sei se foi, se não foi. A verdade é que Saramago ganhou o Nobel da Literatura, feito que não é para qualquer um.
Mas que, por outro lado, não apaga eventuais ‘pecados’ cometidos noutros terrenos.
A publicação das ‘cartas de amor’ durou uns três anos. Ao fim desse tempo, ou as cartas se esgotaram ou Isabel da Nóbrega envolveu-se noutro projeto. A rubrica acabou e ela deixou de ir semanalmente ao SOL. Mas a nossa relação não se interrompeu.
A Carolina Silva, adjunta da direção, falava com alguma regularidade com a filha Isabel – para casa da qual Isabel da Nóbrega tinha, entretanto, ido viver – que nos mantinha ao corrente do que se ia passando. E um belo dia, para fazer uma surpresa à mãe, convidou-me para um chá em sua casa. Fui com gosto. Era uma moradia numa rua recatada da zona do Estoril. Entrava-se num jardim escondido do exterior e tinha-se a sensação de estar no paraíso.
A casa era acolhedora. A sala, para onde entrei a seguir, era grande e espaçosa, com vista para o dito jardim, não muito grande mas muito bem arranjado, e para uma piscina de água azul, cristalina. Isabel da Nóbrega, apanhada de surpresa, recebeu-me calorosamente. Diria mesmo, carinhosamente. Tomámos chá. Conversámos, com a filha sempre presente, afável e solícita. Durante umas horas, foi como se estivéssemos fora do mundo.
Isabel da Nóbrega falou de muitos episódios, como acontece com as pessoas de idade, disse-me que lia muito e continuava a escrever, incitei-a a escrever as suas memórias. Acho que as pessoas públicas devem deixar testemunhos da sua vida. Mas aí ela foi perentória:
– Não – disse, abanando firmemente a cabeça.
Insisti, mas ela manteve-se na sua persistente recusa. Percebi que não valia a pena.
Não voltei a vê-la, mas de vez em quando ela vinha-me à lembrança. Ainda muito recentemente tinha pensado: ‘Tenho de telefonar a saber da Isabel da Nóbrega’.
Na semana passada, estando com a família de férias no Algarve, ao chegar a casa um dos meus netos informou-me:
– Telefonou uma senhora. Mas parecia que estava a chorar. Disse que era muito urgente –. O miúdo parecia impressionado.
Devolvi a chamada. E rapidamente percebi o que se passara.
– A minha mãe partiu – foram as primeiras palavras de Isabel, ditas entre soluços. – Mas partiu em paz, de mão dada comigo.
E a seguir adiantou algo que me comoveu:
– Ela disse-me para, quando partisse, não me esquecer de o avisar. Tinha muita estima por si. Dizia que era uma pessoa limpa por dentro.
Continuámos a falar, embora as palavras lhe saíssem aos solavancos. Disse-me que a mãe tinha ‘simplesmente partido’. Não tinha doenças. Não tinha nada. «Nunca tomou remédios».
Nem toda a gente se pode gabar disso. Poucas mulheres terão tido um final de vida tão feliz como Isabel da Nóbrega – vivendo os últimos 12 anos num pedaço do paraíso, com uma filha que fazia tudo para que ela se sentisse bem. E, no fim de contas, a filha também teve o privilégio de beneficiar durante mais de uma década da convivência de uma grande mulher. Será uma memória que a acompanhará para sempre.
E a terminar, Isabel fez-me uma confidência extraordinária:
– A minha mãe fez uma lista de poetas que queria que a acompanhassem na sua última morada. A lista era tão extensa que eu tive de lhe dizer: «Mãe, reduza lá isso, que não levamos nenhum atrelado».
Ela reduziu – e a filha fez-lhe a vontade. Comprou livros dos poetas da lista, juntou-lhes uma antologia, e acomodou tudo num canto da urna. Isabel da Nóbrega vai ter agora muito tempo para ler.