A caba de me chegar às mãos um pacote resultante de uma das minhas encomendas à distância.Está tão bem embalado que hesito em rasgar o embrulho. Pelo sim, pelo não, opto por deixá-lo intacto. Assim tenho a certeza de o conteúdo que fica protegido.
‘Mas para que queres tu esse livro se não o vais ler?’, poderiam perguntar-me. A primeira coisa que me ocorre a esse propósito é uma frase habitualmente atribuída a Edmund Hillary, o primeiro homem a conquistar o cume da montanha mais alta do mundo, mas que na verdade foi proferida por outro alpinista, George Mallory. Assediado pelos jornalistas, que insistiam em perguntar-lhe por que queria escalar o Evereste, respondeu simplesmente: ‘Because it’s there!’ É isso mesmo: ‘Porque ele está lá’.
A ousadia de Mallory custou-lhe a vida: morreu a 8 de junho de 1924, a poucos dias de fazer 38 anos, enquanto tentava atingir o topo da montanha. Neste caso, o máximo que poderá acontecer-me é desabar-me um monte de livros em cima – livros que ‘estavam lá’ e se foram acumulando numa estante, na secretária, onde calhasse… Este porque o encontrei a um bom preço e não quis perder a oportunidade. Aquele porque fala sobre um tema que me tema que me interessa. Eoutro ainda que, por algum motivo que nem eu próprio sei explicar, a dada altura tive absolutamente de adquirir.
É verdade que não os vou ler… para já. Mas tenciono lê-los um dia. Constituem uma espécie de reserva, de memória externa que expande a possibilidade de conhecimento. Não se trata de puro desejo de acumulação pela acumulação ou, para usar uma expressão popular, de ‘ter mais olhos que barriga’.
Quem tivesse a curiosidade de espreitar a minha biblioteca ficaria, pois, talvez um pouco intrigado ao deparar-se com alguns livros embalados, ainda envoltos na membrana de celofane intacta.
A conclusão mais imediata seria: ‘Que desnaturado! Nem sequer se deu ao trabalho de tirar o livro do embrulho’.
Falta de curiosidade? Falta de interesse? Desleixo? É precisamente o oposto. Revela um cuidado especial. Se os mantenho assim – e só uns poucos, naturalmente – é para os proteger da humidade, da bicharada, da deterioração provocada pelo contacto com o ar e pela passagem do tempo. Ou de algum acidente.
Recordo que há uns anos, quando uma familiar muito próxima se despediu deste mundo, após a sua morte encontrámos pela casa várias peças de roupa e pares de sapatos ainda dentro dos sacos das lojas ou das respetivas caixas. Obviamente, nunca tinham sido estreados.
Na altura estranhei um pouco. Hoje percebo perfeitamente. Para mim, deixar um livro no invólucro é, por um lado, uma maneira de lhe conservar a frescura. Por outro lado, claro, permite-me reservar para mais tarde esse prazer ingénuo de o desembalar. Sigmund Freud, quem sabe, talvez tivesse uma palavra a dizer sobre isto.