Uma história mal contada

O primeiro sinal público de que algo estava a correr muito mal foi uma declaração de Marcelo Rebelo de Sousa, na semana passada, dizendo ser ele a única entidade com competência para nomear e exonerar chefias militares.

É a segunda vez em pouco tempo que um caso envolvendo as Forças Armadas deixa no ar a ideia de que a versão vinda a público esconde uma realidade mais complexa.

A primeira foi o roubo e posterior devolução de armas em Tancos. A segunda é esta novela da substituição de António Mendes Calado por Henrique Gouveia e Melo no Estado-Maior da Armada.

O primeiro sinal público de que algo estava a correr muito mal foi uma declaração de Marcelo Rebelo de Sousa, na semana passada, dizendo ser ele a única entidade com competência para nomear e exonerar chefias militares.

A contundência da declaração era estranha, pois Marcelo normalmente desvaloriza os quid pro quos com o Governo.

Neste caso, parecia mandar um recado direto ao ministro da Defesa, desautorizando uma diligência por ele feita.

Qual fora essa diligência? João Gomes Cravinho chamara ao seu gabinete o almirante Mendes Calado, dizendo-lhe que ia ser exonerado da chefia da Armada.

Ao ouvir isto, o homem terá ido aos arames, pois a sua saída só estava prevista para meados de 2022.

E mesmo esta saída resultava de uma estranha combinação.

Mendes Calado foi reconduzido em março deste ano por um período que, em princípio, seria de dois anos; mas, para permitir que o vice-almirante Gouveia e Melo ainda pudesse ascender ao cargo antes de passar à reserva, aceitara sair antes do fim do mandato, ficando no lugar pouco mais de um ano.

Repito: esta combinação já era estranha.

Ter um chefe militar com a porta de saída indicada, devendo cumprir apenas parte do mandato para dar lugar a um camarada que doutro modo passaria à reforma, já não era uma situação muito ortodoxa. Mas sair apenas meia dúzia de meses depois de ter sido reconduzido no cargo é que seria incompreensível e até humilhante para Mendes Calado…

Mas a que se terá devido a urgência do Governo em demiti-lo?

Se estava tudo combinado para a substituição se dar no Verão de 2022, por que se tentou antecipá-la?

É esta a grande dúvida que pesa sobre este caso e que deu origem a todos os «equívocos» à sua volta, como lhes chamou Marcelo.

Para lá de tudo o mais, tirar à pressa do seu posto um almirante para oferecer o lugar a outro nunca seria bem visto publicamente.

Gouveia e Melo, que saiu em beleza da task force da vacinação, entraria mal na chefia da Armada.

Ele próprio não gostaria de entrar assim.

Insisto, portanto: o que terá acontecido para o processo da substituição do chefe do Estado Maior ser antecipado?

Recorde-se que, uns 15 dias antes de ser anunciada a saída de Gouveia e Melo da task force, este participara normalmente numa reunião do Infarmed, onde nunca se falara da sua saída.

Pelo contrário: as declarações que aí produziu davam ideia de que ia continuar por mais algum tempo na função.

Com um pequeno senão: o almirante colocou reservas à administração da 3.ª dose da vacina a toda a população, e falou em pressões das farmacêuticas.

Pois bem: duas semanas passadas sobre essa reunião, é inesperadamente noticiada a sua saída da task force; e quase de imediato ela concretiza-se.

Cada um tire daqui as conclusões que entender.

Mas uma coisa parece clara: a saída de Gouveia e Melo não estava prevista para já, a decisão foi precipitada por qualquer facto estranho, que poderá ter que ver com discordâncias com o Governo relativamente à 3.ª dose. Ora, nestas circunstâncias, seria muito perigoso deixar o almirante ‘à solta’.

Seria arriscado deixar à solta um militar altamente prestigiado, de personalidade forte e que terá saído descontente da função que desempenhara com elevado brilho.

E isto explicará a pressa em acelerar a sua nomeação para chefe do Estado Maior da Armada.

Era a forma de o manter ocupado e calado.

Assim, escudado na ideia de que o Presidente da República já dera o seu acordo à substituição do CEMA a meio do mandato, o ministro da Defesa, com o mais que certo apoio de António Costa, decidiu avançar com o processo, chamando Calado ao seu gabinete e informando-o da exoneração iminente.

E, aí, naturalmente, o próprio não gostou.

Acabar a carreira militar com uma exoneração a trouxe-mouxe, não seria nada dignificante para o atual CEMA.

Cravinho e Costa estiveram muito mal. Deveriam ter percebido que não se pode brincar assim com a carreira das pessoas.

Além de que um processo conduzido desta forma não seria muito dignificante para as instituições.

E seria mau quer para o atual Chefe de Estado Maior quer para o seu sucessor.

Um homem que saiu tão prestigiado do processo de vacinação não quereria que um camarada de armas fosse afastado à pressa para ele ir ocupar o seu lugar.

Mais uma vez um Governo do PS se envolveu em confusões com os militares.

Decididamente, este não é o seu forte.

Quem não se lembra da tentativa ridícula de impor nos quartéis uma linguagem de jardim-escola?

Episódios desta natureza não são nada bons para o regime.

Tem-se vindo a consolidar a ideia de que, ao contrário dos políticos, nos quais não se pode confiar, os militares são dignos de confiança.

Esta trapalhada em volta do Estado-Maior da Armada foi mais um tiro no pé que os políticos deram em si próprios.

P. S. – As comemorações, seja do que for, soam-me sempre um bocadinho a ridículo. E esta do 5 de Outubro por maioria de razão. Basta ter estudado um bocadinho de História para saber que a República foi uma enorme ilusão. Implantada no pressuposto de que iria resolver os graves problemas que afligiam o país no início do séc. XX, não só não resolveu nenhum como agravou quase todos. A tal ponto que, se não tivesse aparecido Salazar para pôr ordem na casa, teríamos muito provavelmente mergulhado numa sangrenta guerra civil, como aconteceu em Espanha. Foi essa República frustrada que se comemorou esta semana?