A casa onde nasci

Nasci em casa, numa altura em que todos os bebés de Lisboa já nasciam na Maternidade Alfredo da Costa. Mas o meu parto foi muito rápido – e o meu avô materno, que era médico, temeu que a minha mãe não chegasse a tempo à maternidade.

Um destes dias passei defronte à casa onde nasci. Sim, porque eu nasci em casa, numa altura em que todos os bebés de Lisboa já nasciam na Maternidade Alfredo da Costa. Dá-se o caso de o meu parto ter sido muito rápido – e o meu avô materno, que era médico, temendo que a minha mãe não chegasse à maternidade a tempo, determinou que o parto se fizesse em casa.

Por isso sou natural da freguesia de Santa Maria de Belém, enquanto o irmão que nasceu antes de mim é de S. Sebastião da Pedreira. O outro deu à luz no então Hospital do Ultramar, hoje Egas Moniz, mas já foi noutra época, porque faz dez anos de diferença de mim.

O prédio onde morávamos era um casarão do início do século passado, com quatro inquilinos, e que chegou a ser todo ocupado pela nossa família, embora as casas fossem alugadas. Situava-se na Calçada do Galvão, uma artéria relativamente íngreme que sobe de Belém para a Igreja da Memória, erguida para recordar o atentado contra o rei D. José. De nossa casa ao local do atentado – o Pátio das Vacas – não distariam mais de oitenta metros. 

Entrava-se no prédio por um grande hall, com o aspeto de um salão, que tinha à esquerda e à direita portas para as respetivas casas, e em frente uma escada de madeira que dava acesso ao andar de cima.

Nós morávamos no rés-do–chão esquerdo e à nossa frente vivia uma modista que enviuvou relativamente cedo e tinha uma filha com quem brinquei em miúdo chamada Maria João. Essas brincadeiras duraram pouco, pois quando cresci comecei a jogar à bola e queria era o convívio com os miúdos da rua, de pé descalço.

Por cima de nós vivia a minha avó materna e em frente dela um alemão de nome Alfred Ham. O homem trabalhava no conserto de máquinas de projetar e andava pelos cinemas de província nesses arranjos.

Admiti que na Alemanha trabalhasse na propaganda hitleriana e tivesse vindo para Portugal no fim da guerra. E, de facto, numa exploração ao sótão de sua casa com o seu filho mais novo, chamado Klaus, com quem também brinquei em criança, deparei-me com uma grande fotografia de Hitler emoldurada. O homem veio fugido da Alemanha para Portugal trazendo consigo um enorme retrato de Hitler, tal era a sua devoção ao chefe!

A nossa casa tinha um quintal à frente e outro atrás. Neste havia uma nespereira que dava nêsperas deliciosas que quase só eu comia, arrancadas diretamente da árvore. As nêsperas só são boas quando comidas dessa maneira; depois perdem toda a graça. Nunca voltei a comer nêsperas tão saborosas. Também havia um abrunheiro, uma árvore que dava uns frutos quase pretos por fora e esverdeados por dentro. Não eram maus, mas não convinha abusar pois faziam mal à barriga.

Tal como a casa do alemão, a da minha avó também tinha um sótão que era um lugar misterioso onde dificilmente nos aventurávamos. Mas um dia que me afoitei a fazê-lo encontrei um verdadeiro tesouro: dois selos do Correio juntos, por usar, com a efígie de D. Carlos, que verifiquei num catálogo valerem mais de dois contos de reis cada um. Mais de quatro mil escudos os dois! Na altura, um dinheirão. Para um miúdo, uma fortuna.

Fiquei tão deslumbrado que, para não os perder de uma só vez, decidi separá-los – primeiro erro. Eu fazia coleção de selos mas não os pus ao pé dos outros. Dado o seu valor, escondi-os cada um em seu sítio – segundo erro. Passado um tempo, quando fui à procura deles, só encontrei um. Já não me recordava de onde tinha escondido o outro. E uns tempos depois também perdi o rasto ao segundo. Nunca mais os vi. Assim se dissipou a minha primeira fortuna. Foi uma lição para a vida: ao escondermos coisas preciosas, escondemo-las às vezes tão bem que nós próprios não conseguimos voltar a encontrá-las.

Sendo um casarão antigo, a nossa casa originalmente não tinha casa de banho. A casa de banho era no quintal de trás. Ela foi feita posteriormente e tinha o esquentador lá dentro, por cima da banheira, o que originou situações perigosas.

A planta da casa era algo caótica. Entrava-se para um corredor comprido, com cerca de 10 m de comprido, que dava acesso às várias divisões. Na parte da frente, com janelas para a Calçada do Galvão, havia uma pequena sala da qual se passava para um grande salão onde era o quarto da minha mãe. Fazia lembrar os quartos das rainhas que se veem nas gravuras e nos quadros: um espaço enorme com a cama encostada a uma parede.

Depois havia outro quarto, que comunicava com este, onde eu dormia. Era o antigo quarto dos nossos pais, antes de o meu pai ter ido para o estrangeiro (o que aconteceu quando eu tinha dez anos). Seguia-se um quarto de passagem, género corredor, por onde se acedia a outro quarto relativamente amplo onde dormia o meu irmão mais velho.

No outro extremo da casa, sobre o quintal de trás, ficava a cozinha e ao lado outro grande salão onde comíamos e que era a antiga biblioteca do meu pai. Havia ainda um quartinho interior exíguo onde dormia a empregada (chamada ‘criada’). Em certa época tivemos duas empregadas e ficavam as duas ali, o que tinha o seu quê de absurdo: com tanto espaço, com uma casa com sete divisões, duas mulheres dormiam num quarto interior minúsculo.

Diga-se que toda a casa era aberrante, na sua organização e utilização. Nunca me senti lá verdadeiramente confortável e julgo que o mesmo acontecia com os meus irmãos. Não tínhamos espaços que pudéssemos considerar como nossos. E com a minha mãe sucederia o mesmo. Não me lembro de a ver sentada num sofá a ler ou sentada à mesa a trabalhar. Passava o dia fora de casa, a dar aulas ou lições particulares, e depois deitava-se muito cedo – dizia que gostava de ouvir as nove horas na cama – e aí sim, lia horas seguidas. Ouso dizer que a cama era o único lugar da casa onde se sentiria bem. 

Tudo isto para contar que passei um dia destes por esse casarão que antes era amarelado e hoje está pintado de uma cor estranha, arroxeada. Mas não está mal. E o prédio está arranjado, vê-se que foi recuperado com esmero. Parece que lá existe um escritório de advogados, mas não tenho a certeza.

Em tempos tinha duas grandes palmeiras à frente, o que lhe dava bastante caráter, mas morreram assassinadas pelo escaravelho. Porém, a principal diferença que senti ao espreitar para dentro do quintal nem foi a falta das palmeiras – foi a sua pequenez. Eu tinha a ideia de um quintal grande, onde joguei à bola, ao berlinde, e fiz grandes partidas de badmington – e deparei-me com um espaço que me pareceu ridiculamente pequeno, talvez metade do que tinha na cabeça.

São assim as memórias das crianças. Devemos, por isso, desconfiar delas. Não propriamente em relação ao que se passou – mas à dimensão com que registámos os factos na memória.