Hollywood. Como a indústria nunca gostou de falar dos seus acidentes

Alec Baldwin esteve no centro do incidente que tirou a vida a um membro da equipa de produção do filme Rust. Não  é a primeira vez que acontece na indústria cinematográfica. 

Quando pensamos em Hollywood, é provável que o nosso pensamento seja invadido por imagens de glamour e magia. Como se se tratasse de uma realidade condensada numa bolha a que nem todos têm acesso, mas que todos conhecem e com a qual muitos sonham. Ora porque são apaixonados por cinema, ora por serem fascinados pelos protagonistas das histórias… É, por isso, um universo que nos transporta para boas sensações. Aquilo que “nunca” ninguém está à espera é que um “Luzes, Câmara, Ação”, possa significar a morte de alguém. A verdade é que, apesar de pouco se falar e relembrar esses momentos, Hollywood também está repleta de tragédias, onde os sets de filmagens se transformam em filmes de terror. 

O mais recente caso leva-nos até à tarde da passada quinta-feira, no rancho de Bonanza Creek, Novo México, onde estavam a ser filmadas várias cenas do ‘western’ Rust, do qual Alec Baldwin, de 63 anos, era produtor e protagonista. O ator norte-americano matou acidentalmente a diretora de fotografia do filme, Halyna Hutchins, ao disparar uma arma de adereço que “não devia estar carregada”. Antes da tragédia, o assistente de realização, Dave Halls, assegurou a todos que a arma estava descarregada, mas afinal, a pistola responsável pelo incidente tinha munições reais.

Segundo a revista de entretenimento norte-americana The Hollywood Reporter, o auto descreve que o adereço era “um de três guardados num carrinho de adereços fora de um dos edifícios” usados pela produção. Halls pegou numa das armas, entrou no edifício e entregou-a Baldwin. Segundo uma declaração, de seguida o assistente de realização gritou “cold gun”, em português “arma fria” (expressão usada na indústria do cinema para indicar que uma arma só tem um “blank” – bala modificada usada nas filmagens). O documento judicial, obtido pela AFP, diz que Halls não sabia que a arma estava carregada. Por esse engano, em vez de disparar pólvora seca, Baldwin desferiu um tiro fatal que atingiu a diretora de fotografia no peito. A mesma munição feriu no ombro o realizador Joel Souza que já está livre de perigo.
Após o trágico incidente, a produção do filme interrompeu imediatamente as filmagens e a polícia “recolheu para investigação a roupa usada por Alec Baldwin, que teria vestígios de sangue, assim como armas, documentação, munições e câmaras de filmar”. O propósito é entender como e o porquê da arma usada pelo ator estar carregada e se, o acontecimento foi gravado. 

A investigação e o descontentamento da equipa de produção “Esta investigação permanece aberta e ativa”, disse Juan Rios, porta-voz do gabinete do Xerife do Condado de Santa Fé, referindo que não foi feita nenhuma acusação a Baldwin relacionada com este incidente. “As testemunhas continuam a ser entrevistadas pelos detetives”, informou.
Em declarações à agência de notícias AFP, Rios adiantou que Alec Baldwin tem falado e colaborado voluntariamente com os agentes da polícia que estão a investigar o caso. Por ironia, nos últimos anos Baldwin foi uma das vozes que publicamente se opôs ao negócio das armas nos EUA. 

Na rodagem do filme, esta estava mesmo a ser uma preocupação interna, com receios de insegurança, mas a tragédia não foi evitada e a produção já veio dizer que as queixas não lhe chegaram. Sabe-se que a arma usada e outras duas presentes na produção do filme, foram fornecidas pela armeira, Hannah Gutiérrez-Reed, de 24 anos, filha de Thell Reed, conhecido armeiro da indústria cinematográfica. Em setembro, numa entrevista em podcast, a jovem Gutiérrez-Reed já havia demonstrado insegurança na responsabilidade desse papel, demonstrando uma certa inquietação por assumir o papel de armeira principal pela primeira vez no filme anterior em que trabalhou, The Old Way.

De acordo com o Los Angeles Times, citando fontes anónimas, houve, pelo menos, três falhas com a pistola cenográfica antes do acidente mortal, tendo havido ainda protestos realizados por membros da equipa que reivindicavam melhores condições de trabalho. No dia em que a diretora de fotografia morreu, seis técnicos tinham inclusive abandonado o local, alegando “falta de segurança no trabalho”. O jornal norte-americano noticiou que “pelo menos um operador de câmara havia enviado uma mensagem a um diretor de produção, dizendo”: “Já ocorreram três disparos acidentais. Isto é super inseguro”, alertou. 

Fontes do Rust também disseram ao LA Times que protocolos de segurança vitais, incluindo “inspeções regulares de armas”, não foram estritamente seguidos, e pelo menos um operador de câmara que trabalhava ao lado de Hutchins alegou que houveram  “dois disparos acidentais de arma de hélice no set dias antes”: “Devia ter havido uma investigação sobre o que aconteceu”, disse um membro da equipa ao jornal. “Não houve reuniões de segurança. Não havia garantia de que isso não aconteceria novamente. Tudo o que eles queriam fazer era correr, correr, correr”, explicou. Porém, a falta de segurança no manuseamento de armas de fogo era apenas uma preocupação no meio de várias: horas longas de viagem para um local de rodagem isolado, os horários de trabalho mais extensos do que previamente acordado e atrasos no pagamento.

A Rust Movie Productions declarou num comunicado que não tinha conhecimento de nenhuma “queixa oficial”, mas que “continuaria a cooperar com as autoridades de Santa Fé”. A produtora adiantou ainda que está a realizar uma investigação interna.

A suspensão do filme e o afastamento de Baldwin Um porta-voz da produção do filme Rust, em comunicado citado pelo The Hollywood Reporter, afirmou que “todo o elenco e equipa ficaram devastados com a tragédia”, endereçando as mais sentidas condolências à família de Halyna Hutchins. “Suspendemos a produção do filme por um período indeterminado e estamos a colaborar totalmente com a investigação do Departamento de Polícia de Santa Fé”, refere a mensagem, indicando ainda que vai ser prestado apoio a todos os envolvidos no filme.

Alec Baldwin também reagiu rapidamente, fazendo uso da sua página de Twitter para lamentar “profundamente” o acidente: “Não há palavras para expressar o meu choque e tristeza em relação ao trágico acidente que tirou a vida a Halyna Hutchins, uma esposa, mãe e colega profundamente admirada”, escreveu. “O meu coração está partido pelo seu marido, filho e todos os que amavam a Halyna”, lamentou o também produtor. 

Agora, para além da suspensão do filme, o ator decidiu “tirar algum tempo para si”, cancelando todos os seus outros projetos. Uma fonte próxima a Baldwin elucidou: “É assim que ele lida com os tempos difíceis. Sempre que algo mau acontece, no curto prazo, ele afasta-se [dos] olhos públicos”.

Mais de 40 mortes nas últimas décadas Escrito e realizado por Joel Souza, Rust conta a história de um marginal, Harland Rust, interpretado por Alec Baldwin, que vem em auxílio do neto, de 13 anos, condenado a ser enforcado por homicídio. Um filme que fica marcado pela tragédia, numa Hollywood que as vai guardando no fundo dos sonhos e blockbusters. 

Um dos casos lembrados nos últimos dias foi o de Brandon Lee, filho de Bruce Lee, morto também acidentalmente com uma arma que não devia estar carregada com munições reais nas gravações de O Corvo em 1994. Na página do ator nas redes sociais, gerida pela irmã, uma publicação lamentou a morte de Halyna Hutchins. “Ninguém deveria ser morto por uma arma num set de um filme. Ponto”, escreveu Shannon Lee. Uma década antes, o ator Jon Erik Hexum morreu nas gravações da série Cover Up ao disparar uma arma que acreditava estar vazia. 

Um levantamento da Associated Press em 2016 apurou que, desde 1990, tinha havido 43 mortes durante a realização de filmes nos EUA e 150 feridos graves, histórias que muitas vezes ficaram por contar, sobretudo quando as vítimas não eram atores mas técnicos. Na altura, a AP lembrava a história de John Suttles, condutor de camiões que em 2011 morreu numa queda durante as gravações do filme The Avengers nos estúdios da Universal, em Los Angeles. A equipa não teve sequer dispensa para ir ao funeral.