Uma peça ‘escultórica’ em homenagem ao astronauta Youri Gagarine, inaugurada recentemente no Taguspark, está a levantar acesa polémica.
Gagarine foi um astronauta soviético que fez a primeira viagem espacial, dando uma volta completa à Terra. A proeza teve lugar em 1960, pelo que fez sessenta anos no ano passado. E a comemoração da data foi o pretexto para a execução da ‘escultura’ – que estava num museu de arte urbana onde o Taguspark a foi buscar.
Não se percebe bem por que razão o fez. Que tem a ver Gagarine com Oeiras e especificamente com aquele lugar? A única justificação que vejo é o Taguspark ter a pretensão de ser um centro de empresas com uma forte componente tecnológica – e Gagarine ter sido o protagonista de um extraordinário feito tecnológico.
Mas isto é o que menos importa.
A peça compõe-se de um foguetão Soyuz, aquele que lançou o astronauta no espaço, e de um busto do herói sobre uma base paralelepipédica pintada de vermelho vivo com os símbolos da União Soviética – e do próprio movimento comunista internacional – em grande destaque: a foice, o martelo e a estrela.
Como objeto de arte, penso não se tratar de uma grande obra. Mas isso também não é o mais importante para esta crónica. O importante foi a polémica que a peça gerou. Muitos opinadores mostraram-se indignados não propriamente com a homenagem a Gagarine mas com a propaganda que consideraram ostensiva que a ‘escultura’ faz à extinta URSS e ao comunismo. E questionaram a sua presença no local.
Ora, no contexto da época, o plinto vermelho com a foice e o martelo que serve de base ao busto do astronauta, e cujo visual se impõe fortemente aos olhos de quem observa a obra, tem toda a razão de ser. A URSS fez da corrida ao espaço um fator decisivo da sua afirmação como grande potência planetária e da própria afirmação do comunismo.
Os que viveram essa época sabem até que ponto o feito de Gagarine foi importante para os comunistas de todo o mundo e contribuiu para o reforço do prestígio da União Soviética, que desse modo ganhava vantagem sobre os Estados Unidos na competição pela conquista do espaço.
Assim, faz todo o sentido a grande presença que na peça ‘escultórica’ têm os símbolos comunistas: a viagem espacial de Gagarine teve uma extraordinária relevância na projeção do poder da União Soviética.
O plinto vermelho com a foice, o martelo e a estrela não é ali um elemento gratuito.
Numa discussão, o mais importante é a seriedade dos argumentos utilizados. Os argumentos podem ser melhores ou piores – mas devem ser sérios. Não devemos lançar mão de argumentos que noutra discussão podemos usar exatamente ao contrário. Isso é uma desonestidade.
Ora, os que desfazem a ‘escultura’ e defendem que deveria ser retirada daquele lugar (e eventualmente destruída) não pensaram certamente do mesmo modo quando recentemente militantes ou simpatizantes do movimento Black Lives Matter vandalizaram e derrubaram estátuas por motivos ideológicos. Ou quando, indo mais atrás, a estátua de Salazar em Santa Comba Dão foi destruída.
Como alguns se recordam, começaram por cortar-lhe a cabeça, que levaram para parte incerta. Então, a população da terra quotizou-se para a sua restauração, e a estátua foi reposta no mesmo sítio. Mas os vândalos voltaram a atacar e desta vez de forma radical: puseram na base do monumento uma bomba de elevada potência que fez voar em fanicos pelos ares a detestada figura.
Os que se indignaram com este ato – e eu fui um deles – não deveriam sentir-se agora com autoridade moral para exigir a remoção da ‘escultura’ em homenagem a Gagarine. Podiam criticá-la artisticamente, podiam dizer que não presta, o que não podem é diabolizarem-na e pedirem que seja retirada por razões ideológicas.
A História não se apaga. Os que pensam que podem apagá-la destruindo os seus vestígios, para além de mostrarem insuportável intolerância, mostram fraqueza – porque revelam incapacidade para conviver com as memórias.
O comunismo existiu, como o salazarismo existiu, e é natural que haja vestígios deles. Eu diria: é bom que haja vestígios deles. Só os inseguros poderão ter medo do passado.