Saúde, esse pilar da Democracia

A Saúde é um pilar de uma sociedade democrática. Por isso, não pode deixar de ser prioridade para qualquer governo. É de La Palice. Contudo, da narrativa à ação vai uma distância muito grande. E, se fica bem no programa eleitoral ou de governo, tambem não ficava mal na vida real. Mas a verdade é…

Por Sofia Aureliano

A Saúde é um pilar de uma sociedade democrática. Por isso, não pode deixar de ser prioridade para qualquer governo. É de La Palice. Contudo, da narrativa à ação vai uma distância muito grande. E, se fica bem no programa eleitoral ou de governo, também não ficava mal na vida real. Mas a verdade é muito menos satisfatória.  

De ora em diante e, durante alguns anos, ouviremos sempre falar da pandemia. É um escape, ao jeito de bode expiatório, como foi o “anterior governo” durante uma legislatura. Aquelas entidades abstratas a que se recorre quando se quer atirar areia para os olhos e fugir às responsabilidades. Agora, tudo é culpa da Covid-19. Mesmo que os problemas sejam muito anteriores ao vírus.

Naturalmente, sem lhes ser dada atenção, não se resolveram sozinhos. Mas se ainda hoje não se assume que eles existem, qual é a esperança de, no futuro, terem um destino diferente?

António Costa e o seu executivo têm uma peculiar linha do tempo, com efeitos prospetivos. Ora, na primeira legislatura, de 2015 a 2019, estávamos na era pós-PPC. Tudo o que de mal aconteceu no país foi resultado da governação PSD/CDS, durante o “mandato” da troika. Culpa dos mesmos protagonistas “malandros” a quem o povo, maioritariamente, voltou a confiar o voto. Imagine-se!

A partir de março de 2020, entrámos na era pandémica. Um terramoto social provocado por uma epidemia que, não fosse o facto de ter atingido o mundo inteiro, seria certamente uma invenção da oposição para tramar o executivo socialista.  

Ou seja, o governo da geringonça conseguiu a fabulosa proeza de estar seis anos à frente do país, mas apenas ser responsável por cinco meses de gestão. Mais uma extraordinária façanha à Costa.

1. Comecemos pela Saúde. Tão falada nos últimos meses por causa da pandemia. Os profissionais de saúde que foram sobejamente elogiados e designados heróis pelo desempenho inexcedível no combate ao vírus, são os mesmos que, hoje, não conseguem sequer reunir com a tutela, nem ver algumas das suas reivindicações atendidas. Como prémio, receberam a realização da Final da Champions em Portugal. Porque não estão gratos? Não se percebe.

Já em 2019, Portugal era o quinto país da OCDE que menos pagava aos enfermeiros, atrás da Eslováquia, Lituânia, Letónia e Hungria –, com um salário anual médio de 23 mil euros. A média dos 38 países é 41 mil euros por ano.

Já os médicos, viram o seu salário cair na última década. Em termos reais, a remuneração de 2019 é mais baixa do que a de 2010, quer para os médicos especialistas quer para os que não ingressaram numa especialidade. Não é um grande incentivo para fazer carreira nos hospitais públicos.

O retrato completa-se com uma manifesta falta de pessoal, o aumento da dependência de horas extraordinárias e mais contratação de trabalhadores externos. O cenário que se vive nos hospitais portugueses é descrito como caótico, de escassez e à beira da rutura. Transversal a todo o país. Muito aquém do que mereciam os profissionais de saúde e os portugueses.

2. Impera amplamente a narrativa de que Portugal respondeu bem à pandemia. Há várias formas de avaliar a performance nacional. Em vez de ficarmos pela congratulação superficial de sermos o país com maior percentagem de população vacinada (sem dúvida, graças aos portugueses), talvez seja mais justo aprofundar uma análise fina e fazer as perguntas que importam. São conhecidos todos os números associados à covid-19: os mortos, os novos casos, os recuperados, os internamentos e a vacinação. Mas importa saber o que não é dito todos os dias: Como decorreu a atividade assistencial relativa às restantes patologias? Como evoluiu a mortalidade não Covid durante a pandemia? A vida não é só Covid e, em Portugal, muitas pessoas foram vítimas indiretas.

O relatório “Health at a Glance 2021” da OCDE fala-nos de uma quebra de 66% das consultas presenciais de cuidados primários, durante o mês de maio de 2020 em comparação com 2019. Mais de um terço da população reportou ter desistido de um exame médico ou tratamento necessário durante os primeiros doze meses da pandemia – um número internacionalmente só superado pela Hungria.

E relativamente à mortalidade, a Direção Geral de Saúde já veio dizer que as causas das mortes dos portugueses este ano só serão conhecidas em maio de 2022 (ainda dizem que a DGS não é um órgão político…), mas já são conhecidos números de outras entidades, que permitem traçar o perfil do país. A EuroMOMO, por exemplo, identifica Portugal como um dos quatro países da Europa a registar mais excesso de mortalidade durante a pandemia.

Dois estudos da Escola Nacional de Saúde Pública concluem que, dos óbitos verificados acima da marca da mortalidade média registada na última década, entre 51% e 59% deveram-se a patologias não Covid.

Feitas as pesadas contas, subtraindo as mortes por causas naturais, há cerca de 2.600 óbitos que os especialistas afirmam serem mortes colaterais da Covid-19. Ou seja, fruto de patologias que não foram atendidas devido à pandemia.

A falta de atendimento não é, contudo, uma consequência exclusiva da epidemia. Quando o ministério da Saúde arranjou tempo para atualizar o site com os tempos médios de resposta para primeiras consultas hospitalares e para cirurgias, depois das eleições de outubro de 2019 (naturalmente!), os números mostravam um cenário babelesco: 430 dias de espera média por uma cirurgia geral, em Braga, dez meses para uma cirurgia vascular, em Évora, para uma neurocirurgia, em Faro, ou para uma cirurgia de ortopedia, em Coimbra.

E, quem precisava de consulta, esperava e desesperava: dois anos e meio para neurologia, no Hospital de Santo André, nove meses para angiologia, no Egas Moniz, em Lisboa, e um ano e meio, para cardiologia, em Beja.

Bem podíamos morrer sentados. E continuamos a poder.

E mais de um milhão de portugueses continuam a aguardar que António Costa cumpra a promessa de atribuir a todos um médico de família. Esta era da primeira legislatura. Entretanto, quase dobrou o número de utentes à espera.  

Ainda no âmbito da saúde, deixo aqui a denúncia de um caso a que sou particularmente sensível. A Sociedade Portuguesa de Esclerose Múltipla (SPEM) vai ter de encerrar o seu serviço de Neurorreabilitação, em Lisboa, por falta de financiamento do Estado. Falamos de quatro mil euros por mês, que permitiam à associação prestar auxílio a 40 pessoas que sofrem desta doença neurológica crónica, autoimune e, em muitas situações, incapacitante. O governo não está disponível para suportar este custo. Mas também não apresenta soluções para os utentes que vão ficar sem apoio. É, no mínimo, irresponsável.

O estado da Saúde de um país é um sinal da sua vitalidade e da sua vocação para o progresso. Nenhum país é rico se não souber cuidar dos seus. Mas se esta é uma base estrutural da Democracia, é hoje o nosso barómetro para um quadro verdadeiramente aterrador. A casa já está a abanar. E, se continuamos a ignorar as fendas, como queremos que não vá abaixo?