Excitações chinesas

Sustentar o que a professora de estudos asiáticos (!) afirmou é confundir dois ou três episódios com um filme de milénios. Mesmo os raros movimentos de alargamento de fronteiras foram sempre defensivos.

«Não se gasta um bom ferro para fazer um prego
Não se usa um bom homem para fazer um soldado.»
 Provérbio milenar chinês 
 
«Os chineses não gostam da guerra».
 A. Malraux, 
Os Conquistadores
 
Fronteiras XXI (RTP 3, 8/11), dedicado  à atualidade da China, constou de quatro monólogos. Não foi um debate de ideias. Não somos cultura para distinguir as ideias  de quem as transporta – e nenhum dos intervenientes era pessoa para ofender um par… Três intervenções consonantes e uma dissonante. Três querendo transmitir o respetivo saber das coisas; outra, pura pregação política, ideológica, assente numa objetiva ignorância do mais básico.  

A de Heitor Romana, conhecedor de muitos cenários, com o ‘toque LeCarré’ que lhe aprecio, de quem não conta o melhor que sabe;  a de António Caeiro, cordial, transmitindo a vivência inestimável de 20 anos de Pequim, ouvindo os outros com a leve ironia que lhe noto há muito, discreto ceticismo de  agricultor, que nunca terá sido, perante o saber teórico; Luís Ma, universitário típico fechado no umbigo da sua investigação, alheio mesmo às enormidades que nem terá ouvido.  Dissonante, a de Raquel Vaz Pinto, um discurso que intelectual e humanamente me repugna. 
 
Foco-me na dissonante, que condiciona o resto. E detenho-me no despudor de uma afirmação  que fez:  a de uma mesma natureza  guerreira e conquistadora na civilização ocidental e na civilização chinesa.  Contra o saber dos mais reputados autores. Contra, aliás, a mais distraída observação de quem tenha vivido no meio de chineses.

De todos os povos que pude conhecer, os chineses são os menos invasivos. Na relação uns com os outros e, claro, com o ‘outro’. Olhemos para nós.  

Se a natureza da civilização chinesa fosse a da nossa, há muito que teríamos visto soldados chineses  a ocupar desde a Mongólia à Austrália. Tal como num ano a América de Roosevelt dominou o hemisfério Ocidental, (G. Allison), entrou nos lugares do mundo onde pode entrar e engarrafou de porta-aviões os mares do planeta.

Sustentar o que a professora de estudos asiáticos (!) afirmou é confundir dois ou três episódios com um filme de milénios. Mesmo os raros movimentos de alargamento de fronteiras foram sempre defensivos. Civilização de agricultores e comerciantes, a China alimenta-se da paz. O que mais teme é a guerra, pois sofreu uma história de recorrentes invasões. História de resistência, a mais admirável, a adversidades (Simon Leys).
 
Para arrumar definitivamente com a ignorância que alimenta a propaganda em voga do novo ‘perigo amarelo’, diga lá, doutora Vaz Pinto, quantos militares chineses viu fora das fronteiras da China, hoje ou num passado de 4 000 anos? 
Quanto aos territórios do Xijiang e do Tibete, terá alguma ideia da história, datas, razões porque  a ‘expansionista’ China os anexou? Sobre a História e os atritos sino-vietnamitas sabe ainda menos do que zero. 

Meu caro Heitor Romana: por que não iluminou a senhora? Lembrando-lhe os crimes da Inglaterra e das outras potências ocidentais e do guerreiro Japão nas guerras do ópio, logo que tiveram força para isso; e os 25 milhões de mortos que os EUA fizeram no Vietname (bem longe da América) e a invasão da Coreia e do Laos; o genocídio promovido na Indonésia do terceiro-mundista Sukarno; e o Egito de Nasser, os atentados  no Paquistão, e o Irão, e o Iraque, e a Síria, e as bases nas Filipinas, na Alemanha, nos Açores, em Espanha, etc.;  e as bombas, os golpes de Estado, os drones, a fuga do Afeganistão; e a desgraçada América Latina, e o muito de que me esqueço.  E as duas guerras mundiais que a Europa ateou.  Tudo só num século! E a Europa das guerras permanentes? Sobre expansionismo e natureza bélica da civilização chinesa estamos conversados.
 
Apreciei Ana Lourenço. Quis preparar-se, ser objetiva (e sabe-se como o saber da China é  obra para ‘uma vida’…). E teve a argúcia de trazer a doutora Vaz Pinto, porque quanto mais esta ‘diatribar’ mais se percebe que a China e os chineses são o contrário do que ela quer que sejam. É uma chatice não lhe fazerem a vontade, não é?