Never

Enquanto estava a escrever A Queda dos Gigantes, estudei o caminho que levou à Primeira Guerra Mundial e o que me impressionou foi o facto de nenhum dos líderes europeus desejar, de facto, uma guerra na Europa. Apesar disso, todos os imperadores e primeiros-ministros deram pequenos passos lógicos que levaram à pior guerra que a…

Por Ken Follett – Escritor 

Nunca passa-se no presente, mas inspira-se em acontecimentos de há mais de cem anos.

Enquanto estava a escrever A Queda dos Gigantes, estudei o caminho que levou à Primeira Guerra Mundial e o que me impressionou foi o facto de nenhum dos líderes europeus desejar, de facto, uma guerra na Europa. Apesar disso, todos os imperadores e primeiros-ministros deram pequenos passos lógicos que levaram à pior guerra que a raça humana já conhecera. Ao aperceber-me disso, perguntei a mim mesmo: pode voltar a acontecer? Pondo de parte a possibilidade de uma guerra nuclear iniciada por acidente ou por um líder mundial com um desequilíbrio mental como Donald Trump, seria possível homens moderados deixarem-se arrastar contra a sua vontade para a Terceira Guerra Mundial?

Vejo quatro fases no caminho da guerra: a faísca, a escalada, a ameaça existencial e o comprometimento.

Todos ouviram falar no assassínio do arquiduque Francisco Fernando, herdeiro do trono da Áustria, por um nacionalista bósnio em Sarajevo, a 28 de junho de 1914. Foi a faísca que acendeu o lume e, ao escrever Nunca, a minha primeira preocupação foi considerar qual poderia ser o ponto crítico que levasse à Terceira Guerra Mundial.
Coloquei esta questão a várias pessoas profundamente conhecedoras dos assuntos internacionais que tiveram a amabilidade de me conceder entrevistas: o antigo primeiro-ministro Gordon Brown, a Alta-Representante da União Europeia, baronesa Ashton, Sir Kim Darroch, embaixador britânico em Washington até se desentender com o presidente Trump, e diversos académicos.

Um ponto crítico é um local onde um conflito poderá envolver os principais poderes mundiais, e as possibilidades abundam: a Ucrânia, o Estreito de Ormuz, Caxemira, Taiwan, várias localizações no mar do Sul da China e ainda outras.

O que sucede em Nunca é que os líderes mundiais – dos Estados Unidos, da China e de outros países – conseguem superar com êxito um certo número de crises menores, até ocorrer uma com consequências a mais longo prazo. O passo seguinte é a escalada.

Em 1914, o imperador Francisco José sentia que tinha de castigar a Sérvia, um satélite fraco e subserviente do império austro-húngaro; e declarou-lhe guerra. Este foi o primeiro degrau da escalada.

Francisco José era um homem de 83 anos, arrogante e ultraconservador, de um catolicismo rígido. Na elite governante da Áustria, havia quem acreditasse que o castigo da Sérvia, embora necessário, podia ter sido conseguido através de outras medidas que não a guerra. Contudo, no geral, a ação de Francisco José foi geralmente considerada razoável pelos padrões do seu tempo.

Apesar disso, a declaração de guerra à Sérvia alarmou os russos. A Sérvia fazia parte da região dos Balcãs, na vizinhança da Áustria e da Rússia, dois grandes impérios, e uma incursão naquela zona por qualquer dos lados era considerada agressiva. Assim, o czar Nicolau II mobilizou o Exército russo.

De novo, uma reação de menor grau podia ter sido suficiente, mas os generais russos disseram ao czar que uma mobilização parcial era impossível e, assim, recrutaram todo o Exército, composto por três milhões de homens. Em retrospetiva, podemos afirmar que foi uma reação exagerada, mas, na altura, foi vista como razoável. Não obstante, constituiu um segundo degrau na escalada.

Não se tratou de uma declaração de guerra. Ninguém morreu. O czar Nicolau II não considerou que tinha dado início a uma guerra.

E é extremamente fácil ver como este tipo de situação pode ocorrer no presente. Os americanos intensificam as sanções sobre o Irão e, assim, os iranianos apoderam-se de um petroleiro no estreito de Ormuz. Os canadianos detêm a diretora financeira da Huawei e, logo, os chineses prendem dois canadianos e acusam-nos de espionagem.

A 6.ª Esquadra dos Estados Unidos bombardeia uma aldeia no Líbano e o Hezbollah bombardeia o quartel do Corpo de Fuzileiros Navais em Beirute. Por vezes, os líderes políticos abstêm-se de retaliar, mas normalmente os seus eleitores não lhes agradecem por isso, pois desejam que o seu país seja visto como forte.

Agora, considerem a posição do kaiser alemão quando três milhões de soldados russos se começaram a reunir na fronteira da Rússia com a Alemanha e com a Áustria, aliada da Alemanha. O kaiser Guilherme II teve de mobilizar o Exército alemão – de facto, não o fazer teria sido considerado abandono do dever equivalente a traição. Assim, a Europa deu mais um passo naquela caminhada fatal.

Isso, porém, não bastou para a Alemanha. O alto comando alemão acreditava conseguir derrotar a Rússia ou a França, mas não ambos os países. Assim, o governo alemão pediu aos franceses um compromisso de neutralidade no caso de um conflito armado entre a Alemanha e a Rússia. 

Os alemães tinham razões de sobra para recear uma punhalada nas costas. Quarenta e três anos antes, no final da guerra franco-prussiana, a Alemanha havia conquistado a Alsácia e a Lorena aos franceses, que queriam reaver esses territórios.

Contudo, a França tinha um tratado de defesa com a Rússia, tratado esse que seria quebrado por uma declaração de neutralidade. Os tratados podem sempre ser violados, mas era evidentemente do interesse francês manter um aliado tão poderoso como a Rússia. 

Uma vez mais, em retrospetiva, podemos afirmar que, se o primeiro-ministro francês René Viviani tivesse entrado em negociações de paz com o kaiser Guilherme II, poderia ter salvado a vida de milhões de franceses. E, mais uma vez, poucos foram os que, ao tempo, o viram dessa forma. Em todo o caso, Viviani recusou-se terminantemente a dar ao imperador Guilherme as garantias que os alemães exigiam. 

Para o kaiser, isso constituiu uma ameaça existencial, uma ameaça à própria continuidade do seu país, que, não nos esqueçamos, havia sido formado apenas quarenta e três anos antes. E este foi um momento-chave em que uma mera tensão se tornou um perigo real. 

A Alemanha estava ameaçada a leste e a oeste. No Alto Comando de Berlim acreditava-se, e provavelmente com razão, que a única hipótese de sobrevivência era neutralizar a França – o que, segundo pensavam, e acertadamente, era possível alcançar com grande rapidez – para depois, com a retaguarda protegida, enfrentar o inimigo mais poderoso a leste. 

Foi assim que em breve se chegou à última fase, o comprometimento. A Alemanha invadiu a França e instalou-se o apocalipse. 

Em Nunca, existe um momento semelhante. Sem querer revelar demasiado da intriga, a certa altura, o líder de uma nação declara: «O meu país está prestes a ser aniquilado; eu próprio serei certamente assassinado; não tenho nada a perder; usarei as armas mais terríveis que tenho ao meu dispor.»

Em 1914, apenas a primeira e a última das peças de dominó tiveram uma verdadeira possibilidade de escolha. O imperador Francisco José da Áustria poderia ter optado por uma reação menos incendiária ao assassínio em Sarajevo; e depois, na última decisão fatal antes do início da carnificina, os britânicos tiveram a opção de participar ou não na guerra. 

A Grã-Bretanha tinha um tratado de defesa com a França, que poderia ter sido denunciado com a justificação de que a França, ao recusar a declaração de neutralidade, acabara por provocar a sua própria invasão. Os britânicos, porém, quiseram envolver-se. Trata-se de um lugar-comum da nossa história: os britânicos veem sempre o país mais poderoso do continente europeu como seu inimigo e, assim, tendem a pôr-se ao lado do segundo país continental mais poderoso, a fim de garantirem que nunca existiu um sério rival da hegemonia da Grã-Bretanha. 

E foi assim que a Grande Guerra aconteceu mais ou menos por acaso. 

O cerne do meu romance e, quanto a mim, o seu aspeto mais fascinante, é a parte central, a forma como a crise se vai intensificando. Como é que líderes centristas moderados tomam decisões que levam a uma guerra catastrófica?

Que razões levaram os dirigentes japoneses a optar por atacar os EUA em 1941, a nação mais rica e poderosa da história da civilização humana? Como é que o presidente Lyndon Johnson se deixou enredar lenta e inexoravelmente no Vietname, arruinando a sua reputação e a do seu próprio país? Como pôde Tony Blair ser tão insensato a ponto de envolver o Reino Unido numa guerra organizada por George W. Bush, o presidente americano mais ignorante e incompetente em cem anos?

Não sei as respostas, está bem de ver, mas proponho uma outra maneira de ajudar a aclarar as questões. Com as suas personagens ficcionadas, o romancista pode permitir-se imaginar as emoções íntimas e os processos mentais de homens e mulheres que tomam decisões que mudam o mundo. Em Nunca, existe um paralelo entre Washington e Pequim. Ambos os líderes  ̶–  na minha história, pessoas inteligentes e bem-intencionadas – tentam aguentar-se numa corda bamba. A presidente americana, republicana, esforça-se por evitar a guerra ao mesmo tempo que se defende dos ataques nacionalistas do seu rival belicoso, candidato às primárias. O presidente chinês é tendencialmente progressista, mas vê-se prejudicado pelos comunistas da linha dura que detêm, de facto, o poder. A maioria dos dirigentes nacionais partilha do mesmo problema, o de combater extremistas dentro da sua própria base política; o que sucede, por exemplo, com Boris Johnson e a velha guarda conservadora, e com Joe Biden, que tem de enfrentar a fação Bernie Sanders. Em democracia, os dirigentes têm de responder perante a opinião pública. As pessoas não gostam que o seu país pareça fraco e este tipo de pressão empurra-os para decisões um tanto mais arriscadas do que as suas inclinações iniciais. 

Contudo, todas estas decisões não se assumem de imediato como fatídicas. A declaração de guerra de Francisco José à Sérvia não tinha necessariamente de ser uma ameaça à Rússia; o czar e o kaiser podiam ter chegado a um modus vivendi. No entanto, uma dessas decisões acaba por parecer existencial. Em 1914, os alemães julgavam que iam ser esmagados a leste e a oeste pela França e pela Rússia e que a nação próspera que haviam criado nos últimos cinquenta anos poderia simplesmente desaparecer, à semelhança do que sucedera com a Polónia. E em circunstâncias dessas, os países têm tendência a correr riscos. O kaiser Guilherme não desejava a guerra, mas, a acontecer, queria lutar quando e como lhe conviesse. Portanto, invadiu a França. 

Mas as coisas não ficaram por aí. Os russos podiam ter-se contido, mas invadiram a Alemanha, vindos de leste. Os britânicos podiam ter evitado envolver-se e, nesse caso, a batalha de França teria sido curta e muitas vidas seriam poupadas. No entanto, mais uma vez, os líderes nacionais tomaram decisões que lhes pareceram sensatas, inevitáveis quiçá; e o resultado foram quatro anos de matança numa escala que nunca tinham imaginado.
E é assim que a minha história se desenrola: uma série de conflitos menores, de entre os quais um é um pouco mais perigoso que os outros; uma escalada gradual em que cada ação provoca uma reação mais agressiva; um momento em que um país sente a sua própria existência em perigo; e depois a derradeira decisão, dar ou não início a uma guerra nuclear. Não vos vou dizer exatamente o que sucede; quando lerem o livro, só o saberão na última página. E quando souberem o final, peço-vos por favor que não o contem a ninguém.