Ben Wilson: “As cidades são produto dos seus desastres tanto quando dos seus sucessos”

O ponto de partida de Metrópoles: A história da cidade, a maior criação da civilização foi o eco da Lisboa do século XIV, que ainda se ouvia quando Ben Wilson passou por cá. Com a pandemia, cidades como a capital portuguesa têm mais uma oportunidade, argumenta.

Ben Wilson: “As cidades são produto dos seus desastres tanto quando dos seus sucessos”

A s cidades fascina-nos, e não é de estranhar. São pontos de encontro fortuito, de partilha de ideias, de descoberta e prazer, descreve-nos Ben Wilson no seu livro Metrópoles: A história da cidade, a maior criação da civilização (Desassossego, 2021).

Mas também nos causam uma certa repulsa, um receio de não realizarmos o nosso potencial longe da natureza. É algo que vemos expresso desde há quase cinco mil anos, nos épicos de Gilgamesh, conta-nos Wilson, que traça o caminho destas primeiras cidades da Mesopotâmia até às cidades superstar de hoje, como Xangai e Nova Iorque. Pelo meio passa pela Lisboa do século XIV, a primeira cidade verdadeiramente global. 

Enquanto terminava o seu livro, sobreveio a pandemia, o acelerar do trabalho à distância, o medo da multidão. Talvez seja uma oportunidade, diz Wilson. «O crescimento que estava a haver de cidades superstar, globais, não era necessariamente uma coisa boa», salienta. «As cidades estavam a começar a ser vistas como sítios para investir em propriedade, esvaziadas no seu centro, porque eram simples engenhos de fazer dinheiro». Quem pode sair a ganhar são cidades de tamanho médio como Lisboa. «Podem tornar-se mais agradáveis, menos hiperintensas. Com acesso a cultura, a gastronomia – é tão importante, as pessoas querem comer bem – e com a capacidade de nos conectarmos».

Fala de Lisboa como uma cidade chave no desenvolvimento da metrópole como a conhecemos. Quão crucial é que foi para o seu livro?

Lisboa foi um dos meus pontos de partida. Aquilo que sempre tornou a urbanização tão poderosa é a maneira como as cidades estão ligadas umas às outras. Se olharmos para as primeiras cidades na Mesopotâmia, foi a ligação delas com regiões mais amplas, atraindo rotas comerciais, trocando ideias tanto como mercadoria, que serviu de combustível para a urbanização.

Quando comecei não planeava ir tão atrás, queria pensar nas cidades da maneiras como elas se estavam a desenvolver pré-covid, esta espécie de grandes cidades superstar, como Xangai, Singapura, Nova Iorque, Londres ou Lagos. Tudo cidades que estavam de certa maneira a começar a fazer parte de uma conexão global neste mundo hiper-urbanizado em que vivemos.

Quando olhamos para trás, para as cidades que formaram esses elos, Lisboa foi totalmente crucial nisso. Ligou o globo inteiro, as Américas, a Ásia, a Europa. E lançou as rotas comerciais de especiarias, madeiras, metais e pedras preciosas que fizeram as cidades da Ásia florescer. Se pensarmos na Europa na Idade Média, era um território muito remoto em relação ao resto do mundo e não tinha cidades muito grandes. As principais cidades eram nestas rotas comercias que cruzavam a Ásia, através da Rota da Seda, ou a das rotas marítimas que ligavam a China com Bagdade. Era aí que havia estas enormes cidades cosmopolitas. Lisboa veio do nada, passou de ser a ponta da Europa a ser a porta de entrada na Europa.

Nota-se bem que é um assunto que o entusiasma.

O que me incentivou a escrever este livro foi vir a Lisboa, e de certa maneira ver essa história refletida muito obviamente na arquitetura, na comida e na sensação que nos deixa esta cidade. Gosto dessa história que ganha vida, como as histórias ecoam através dos séculos.

Lisboa não aparece no início do livro, mas creio que é um momento de articulação, como se projeta para fora, avançando pelo mar como se quisesse separar-se da Europa e ser global. No seu age, Lisboa tinha uma cosmopolitismo que era único na Europa, com uma mistura de gente, bens, vistas, gerava ciência e inspiração. Era o sítio mais importante na Europa. E é interessante como as cidades podem vir de uma relativa obscuridade, Lisboa não era o candidato mais óbvio, e de repente: ‘boom’, lá estava.

Para mim é isso que são as cidades, podem subitamente explodir, e refletem os seus tempos. Sugam imenso talento, são os sítios onde as pessoas querem ir fazer dinheiro. Tornam-se em cidades de contrastes, excitação e disparidades económicas. Lisboa tinha quase todos os ingredientes sobre os quais eu queria escrever. Quando vim cá, ver os monumentos das descobertas, apontando para o mundo… Claro que muito já não existe por causa do terramoto. Mas ficou o sabor.

Achei muito interessante a sua descrição de como o mundo era muito mais conectado na altura do que os navegadores portugueses alguma vez imaginaram. Conta como chegaram à Índia e ficam espantados por se depararem de imediato com dois tunisinos lá, vizinhos vindos do outro lado do Mediterrâneo. 

Sim, de facto já era um mundo conectado, havia cidades cosmopolitas muito grandes que trocavam a riqueza do mundo, e das quais a Europa não fazia qualquer ideia. Veneza tinha uma suspeita, ainda que com muitos intermediários pelo caminho. Os portugueses foram diretamente à fonte, mas de facto eram forasteiros bárbaros. A Europa desenvolveu-se de uma forma muito diferente. Na Ásia há uma forma muito mais expansiva de urbanização, porque não havia tanta ameaça da guerra.

Eram locais com muito mais comércio livre, com uma mistura de hindus, muçulmanos, budistas, judeus, alguns cristãos, todo um conjunto de religiões e etnias, culturas, eram um verdadeiro caldeirão cultural. Enquanto as cidades europeias, porque se desenvolveram nos tempos das cruzadas, de guerras contra muçulmanos e pagãos eslavos, eram bases logísticas altamente defendidas para a guerra, ou então tinham recebido as suas liberdades a troco de realizar algum tipo de tarefa económica, era uma sociedade feudal. Algumas tinham um certo grau de autonomia e autogoverno, mas mesmo assim eram construídas à volta de tecnologias militares – têm muralhas, os navios têm propósitos ofensivos e defensivos, eram uma espécie de máquina de guerra.

As tecnologias bélicas cresceram de mãos dadas com o desenvolvimento das cidades europeias, e quando os portugueses e os holandeses chegam ao Oceano Índico, isso dá-lhes uma enorme vantagem competitiva. Houve como que um período de incubação, de urbanização mais lenta e menos avançada, ligada a senhores da guerra, enquanto as cidades eram ilhas de liberdade, estabilidade e poder económico.

Escrevi também sobre Lübeck, na Alemanha, uma cidade pequena, muito defensiva, mas muito rica e com autogoverno. Por vezes os presidentes da Câmara de Lübeck diziam aos reis de Inglaterra o que fazer, é uma parte da história medieval de Inglaterra em que não pensamos. Pensamos em cavaleiros e reis, mas eles estavam nas mãos destas cidades alemãs do Báltico, altamente organizadas. Era em cidades como estas que estava o poder, até ao nascimento do Estado-nação – as cidades vêm primeiro. 

No livro menciona Lübeck e a Liga Hanseática como uma espécie de modelo que seria aplicado por Lisboa.

Poderia dizer-se o mesmo das cidades-Estado italianas. Usei um caso alemão em parte porque é menos óbvio, conhece-se menos da Liga Hanseática do que das cidades italianas do Renascimento. Mas esta de facto era uma forma de urbanização distintamente europeia, e eles exemplificam-no muito bem. E também eram cidades recentes, não tinha havido ali presença romana, fenícia ou grego, criaram-se a si mesmas tipo start-up, eram um bocado como Shenzhen, na China.

Há historiadores portugueses que consideram que só foi possível a expansão portuguesa ser tão rápida devido ao facto de Portugal ser o único país onde a burguesia das cidades tomou o poder político, através da dinastia de Avis, décadas antes. 

Sim, e também porque era um país cosmopolita de certa maneira, com uma comunidade judaica que mantinha as conexões formadas durante o período islâmico, que tinha um conhecimento quanto às rotas comerciais que chegava um pouco mais longe. E, claro, Lisboa era diferente do resto de Portugal, tinha uma identidade e arranjos políticos próprios. Era um terreno muito fértil para exploração e inovação. E havia uma certa oposição à nobreza cruzada, essa tensão produziu uma mistura do marcial com o comercial. Era um desenvolvimento único que se via em Portugal, não o encontraríamos em muitos países europeus à época. As coisas mudam muito rápido quando se mistura o novo e o velho, valores tradicionais mas também perspetivas viradas para fora. 

Essa seria uma excelente descrição de todo o processo colonial, misturando instintos brutalmente conservadores de ‘civilizar’ outros povos com uma perspetiva comercial muito forte. 

E também uma mistura com o espírito científico e com a curiosidade, juntando-se ao comercial e à guerra, num sentido mais nacionalista. É complexo, interessante e depende de um conjunto muito específico de circunstâncias.

Olhando para o futuro, o seu livro menciona a pandemia de passagem, mas tudo aconteceu quando estava a acabar de escrever. Não descreve a metrópole como tendo um progresso linear, como se necessariamente estamos sempre a tornar-nos cada vez mais urbanos, mas no período em que escreveu até estávamos. De repente, esta grande viragem da pandemia acontece. O que antevê?

Mesmo não tendo sido escrito durante a pandemia, creio que o livro se adequada bem à pandemia. Pela maneira como o foco é as cidades estarem constantemente em metamorfose ou evolução, mas também terem a resiliência para absorver crises.

São produtos dos seus desastres tanto quando dos seus sucessos. Há altos e baixos na urbanização. Quando escrevia o livro, estávamos num momento de uma energia urbana incrível, uma renascença urbana, as pessoas estavam a mudar-se para as cidades. Isso ainda está acontecer, as pessoas continuam a mudar-se para as cidades, sobretudo nos países em desenvolvimento.

Vimos uma espécie de migração em massa para as cidades na China, vamos ver o mesmo em África, nada disso vai parar por causa da covid-19. E, de certa maneira, estas situações de emergência fazem das cidades um sítio mais seguro para se estar, especialmente numa altura em que já vês pessoas a ir para as cidades devido a problemas causados pelas alterações climáticas.

As cidades dão-nos segurança e conforto, é isso? 

Quando a pandemia nos atingiu, creio que foi uma coisa muito ocidental, do norte global, pensar que ‘ou temos a cidade ou não temos’. Na maior parte do mundo, a urbanização é vista como uma rota para fora da pobreza. Não quer dizer que as pessoas se deem bem, as cidades podem ser sítios brutais, mas tens maior probabilidade que os teus filhos tenham acesso a educação, há mais oportunidades para inovação e cooperação, mas também competição. A capacidade de escolher entre um ou o outro é um luxo. E creio que durante a pandemia pensámos assim, em termos de se a cidade ia crescer ou decair. O que não nos estávamos a perguntar era que tipo de cidade surgiria. A pandemia foi um desastre, mas foi uma oportunidade incrível.

Em que sentido?

O crescimento que estava a haver de cidades superstar, globais, não era necessariamente uma coisa boa. Estava a colocar muita pressão sobre essas cidades, em termos de gentrificação, as cidades estavam a começar a ser vistas como sítios para investir em propriedade, esvaziadas no seu centro, porque eram simples engenhos de fazer dinheiro. A capacidade de trabalhar a partir de casa não significa o fim das cidades, significa um reaproveitamento das cidades. Ainda está para se ver como vai correr, mas imagino que possa significar uma redistribuição de poder e da economia, para longe de umas poucas cidades globais condensadas, no sentido de cidades como locais mais habitáveis.

Menos opressivos?

Sim, sítios que atraem pessoas que podem trabalhar em qualquer lado, que oferecem qualidade, a preços acessíveis, especialmente para jovens. Estou a pensar em cidades de tamanho médio, incluindo cidades como Lisboa, que estão bem conectadas, ou Tallinn, na Estónia. Estão a querer tornar-se sítios onde as pessoas querem vir viver e trabalhar mais remotamente. A necessidade das cidades continua a existir, mas podem tornar-se sítios mais agradáveis, menos hiperintensos. Com acesso a cultura, a gastronomia – as pessoas querem comer bem – e com a capacidade de nos conectarmos.

De termos os encontros fortuitos que as cidades produzem e que são tão importantes em certas fases do nosso ciclo de vida, sobretudo quando somos mais jovens e recetivos a ideias, é algo que surge cara a cara, quando as pessoas se encontram em cafés, discotecas, cinemas, piscinas, o que seja. As cidades produzem essa espécie de teatro da vida, em que podes participar, ou simplesmente dar um passo atrás e deixá-lo decorrer, sentar-te num café e assistir à vida a desenrolar-se.

Talvez a cidade passe a girar menos à volta da procura de espaços de escritório e se torne mais residencial, mais dedicada aos prazeres da vida, talvez até o sítio para onde as pessoas vão ao fim da tarde. Na América vemos um pouco isso com as cidades estão a decrescer, com espaços verdes e profissionais jovens que querem um estilo de vida urbano, mas não necessariamente em cidades superstar. Creio que cidades que anteciparem estas mudanças, com menos carros e grandes estradas, mais parques e rios mais limpos, com espaços públicos ao ar livre e boas ligações de transportes, podem safar-se muito bem. 

Fascina-me sempre o próprio conceito de cidade. Fico surpreendido com a ideia de que tantos seres humanos possam viver tão distanciados da questão mais crucial da humanidade, que é onde é que vais arranjar comida.

É uma coisa incrível, é verdade. Mesmo as primeiras cidades, como Uruk, na Mesopotâmia, são em locais aparentemente pouco promissores. São construídas nos pântanos do sul da Mesopotâmia, que por um lado produzem muita comida, mas também são difíceis de gerir, com cheias e uma paisagem em mudança, quando construir algo permanente, duradouro, é o início de qualquer cidade. Isso quer dizer que tens de ter comércio, especializar-te para produzir o que as pessoas querem.

Tem um efeito em escala, de produzir uma sociedade complexa que controla as suas hinterlands [arredores menos urbanizados, mais rurais], mas também atrai recursos, mão de obra e comida vinda de distâncias cada vez maiores. Essa dinâmica tem acelerado exponencialmente desde a II Guerra Mundial, as cidades costumavam de ter de depender da sua hinterland para a produção de comida.

E é muito interessante quando vais mais além. Por um lado, é ótimo, porque tens comida vinda de todo o mundo, mas isso também nos põe numa situação cada vez mais precária. O peso que uma cidade coloca no ecossistema costumava ser local, agora é global. E, perigosamente, torna-se invisível, não há nenhuma ligação tangível à degradação ambiental local. As cidades podem ser instrumentais ao tornarem-se sítios sustentáveis, a nível do carbono e da nossa pegada ecológica. Ou então não, são sítios com muito desperdício.

Mas há a sugestão de que também podem ser parte da cura do planeta. Reduzindo a energia desperdiçada edifício a edifício, com uma escala só possível na cidade e com partilha de recursos. Gerindo esses fluxos de energia podemos alcançar a sustentabilidade, mas de momento não é o que acontece. Na COP26 reparei que girava tudo à volta de Governos nacionais, quando unidades individuais como cidades, ou até bairros dentro de cidades, parecem ser os locais onde podes produzir a inovação e partilha necessária para viver de forma diferente, sem sacrificar as coisas de que precisamos.

Mas nem todas as cidades são locais idílicos para se viver…

Muito do meu livro é sobre como adoramos as cidades, mas também sobre como as odiamos. Cidades como Lisboa produziram inovação muito rápido, ou Londres nos séculos XVII e XVIII, ou as primeiras cidades onde a escrita foi inventada, bem como a matemática e o comércio. Estamos conscientes do seu poder, mas também de como por vezes são imorais, cheias de doenças, pervertem a natureza. Há uma certa atração e repulsa que é muito clara, particularmente na cultura anglo-saxónica.

Julgo que se deve à sujidade da cidade industrial e ao desejo de lhe escapar. Daí que tenha surgido uma suburbanização maciça que se baseia numa espécie de atitude anti-cidades. E queria mostrar essas tensões ao longo do livro. Porque frequentemente quando tentamos criar melhores cidades acaba em completo desastre. Muitos planeadores andam à procura de uma cidade utópica e racional, e frequentemente acabamos por arrancar as coisas boas, aquilo que era o coração e a energia das cidades. Ou seja, os bairros, a confusão – não no sentido de sujidade, no sentido da mistura de funções. Isso é uma história que vem de trás, a tensão entre a visão de uma cidade de luz e uma cidade de sombras.

Escrevo sobre cidades em tempos de guerra, mesmo quando estão a ser arrasadas há algo que continua a mexer e a trabalhar, as pessoas continuam a fazer as coisas funcionar contra todas as probabilidades, perante cercos, bombardeamentos horríveis ou até guerra nuclear. As cidades tendem a sobreviver. Mas muitas vezes temos medo delas, perdemos a fé, quando as devíamos ver como uma solução.

Essa dualidade entre atração e repulsa pareceu-me particularmente notória quando escreve sobre uma dimensão moral das cidades, um receio do erotismo, dos estímulos, uma certa condenação da gula e do acesso a comidas exóticas. Podia explicar um pouco isso?

Abro o livro a escrever sobre a sensualidade das cidades. O primeiro capítulo é sobre o épico de Gilgamesh, a primeira grande obra de literatura, que surge na primeira cidade, Uruk. E há uma certa sensação na obra de que a cidade atrai o rei Gilgamesh, mas sente que é um pouco opressiva, que não lhe permite realizar o seu pleno potencial como um ser humano ligado à natureza.

Gilgamesh é testado, mas o seu amigo Enquidu é atraído para a cidade pelo sexo, comida as festividades, todas essas coisas boas. Mas depois os deuses punem Enquidu, matando-o, e Gilgamesh vai até aos confins da terra à procura de imortalidade. O épico acaba em Uruk, e ele diz: ‘Olhem para as muralhas, olhem para a palavra escrita. Isto é imortalidade’. Isso imediatamente põe-nos perante a ideia de que a cidade nos parece algo artificial. Mas que também é um lugar de erotismo, e é isso que nos atrai. É um encontro de mentes, corpos, uma experiência de diferentes comidas, luxo, da palavra escrita, que é impossível noutro lado.

Os sumérios da Mesopotâmia, como os romanos e os gregos, dividiam os seres humanos entre os que viviam nas cidades e os bárbaros lá fora. E muito disso tinha a ver com o luxo. Para os romanos, ir aos banhos era uma experiência urbana, daí que pusessem casas de banhos em locais de fronteira, recentemente conquistados, de certa forma para que os ‘bárbaros’ pudessem ser seduzidos.

Era uma espécie de isco?

Era uma experiência de luxo, calor, mas também um ponto de encontro, um mimo. Essa reinvenção da sexualidade nas cidades é o que as faz parecer uma Babilónia, locais de prostituição, vício e perversão. Mas também respondem à nossa necessidade de diferença e liberdade. Cada cidade tem uma qualidade de sensualidade que está associada à modernidade e ao progresso. De encontrar um antídoto para a cidade.

Bagdade tornou-se famosa como ponto de encontro de pensadores e académicos, juntando tradições mediterrânicas dos gregos e romanos com ideias chinesas e indianas, sobretudo a nível da matemática e da ciência. Mas também era um local de gastronomia. Era famosa sobretudo pela comida de rua, há histórias de califas se disfarçarem para irem comer. A vida nas cidades antigas não era à volta do lar, de todo, as casas eram apinhadas, ias comer, saías. Nós de certa forma retirámo-nos para as nossas próprias casas, mas essa ideia doméstica da cidade é muito recente.

E mesmo agora, essa ideia de cidade doméstica é uma coisa muito do norte global. Quando vamos ao sul, ainda vemos essa dinâmica de partilha em espaços públicos, talvez porque aí muitas casas ainda são apinhadas. 

E também tem a ver com as cidades onde mais pessoas acabaram de chegar. Precisam de conquistar o coração da cidade através do estômago. A comida é recorrentemente a primeira forma de empreendedorismo e integração das pessoas que acabaram de chegar. Especialmente no sul global, a comida é parte da cultura urbana. Quando estava em Los Angeles notei que a comida de rua estar a regressar. Isso refletia uma mudança.

De uma cidade muito branca, uma espécie de anti-cidade, recente, expansiva, construída à volta do carro, está a tornar-se maioritariamente latina, uma comunidade que usa a cidade de forma diferente. Querem espaços públicos, não usam tanto o carro, querem mais cultura de bairro. Desde o crash de 2009, os chefes não conseguiam arrendar cozinhas, então tornou-se uma cultura mais de rua. Pouco a pouco, Los Angeles está a ser reaproveitada de um sítio de casas suburbanas e carros para um local de encontro à volta da comida.