Drama silenciado

Estas intervenções cirúrgicas são simples de executar, mas o mais importante é que, restituem a visão, um bem tão precioso. São uma verdadeira dádiva a quem já não tinha esperança de voltar a ver…

Por Álvaro Carvalho
Médico, Presidente da Fundação

O aumento da esperança de vida da nossa população é um grande avanço civilizacional. Todavia, para que os idosos tenham uma qualidade de vida aceitável, torna-se necessário acompanhar de perto os problemas que lhes são inerentes. Por outro lado, é evidente que a falta ou o atraso na sua solução é bastante mais notório no Interior desertificado.

Podemos tomar como exemplo o acesso à saúde. Apesar de, desde a década de 1980, todos os concelhos disporem de Centros de Saúde e de consultas de Medicina Geral e Familiar, falha a resposta em muitas especialidades médicas, porque os hospitais distritais têm carências de profissionais e de equipamento técnico para o fazer em tempo útil. 

A Oftalmologia é um paradigma dessa insuficiência. Nos distritos da Guarda e de Castelo Branco, um cidadão espera anos para ter uma consulta no SNS. E mesmo que a ela tenha acesso, tarde e as más horas, quase nunca chega a fazer a cirurgia de que possa necessitar.

A catarata é uma patologia ocular largamente prevalente nesta população envelhecida, mas não só, levando a perda gradual da visão, nalguns casos mesmo à cegueira. Esta situação determina limitações várias, interrupção da actividade profissional de quem ainda tem condições para trabalhar e origina múltiplas intercorrências, algumas delas graves: quedas com traumatismos cranianos, da coluna vertebral e fracturas ósseas, como a do colo do fémur. Mesmo que estes acidentes não sejam fatais acarretam uma via-sacra patológica, com complicações diversas, como escaras, infecções e embolias, que levam à degradação da qualidade de vida. Ora, tudo isto tem custos elevados, porque origina internamentos hospitalares prolongados, cirurgias, reabilitação e consumo de medicamentos. 

Numa altura em que os gestores se preocupam mais em contabilizar custos com a saúde das pessoas do que com a qualidade assistencial, nunca vi nenhum estudo a debruçar-se sobre esta realidade. Se tal acontecesse, talvez concluíssem que gastariam menos com as operações às cataratas do que com o tratamento das complicações que delas resultam.

Estas intervenções cirúrgicas são simples de executar, com anestesia local, raras complicações e baixos custos. Mas o mais importante é que restituem a visão, um bem tão precioso. São uma verdadeira dádiva a quem já não tinha esperança de voltar a ver o caminho que percorre, os contornos dos objectos, as letras e cores na televisão.

Em 2016, a Fundação a que presido, vocacionada para ter uma missão no âmbito da saúde no Interior, identificou esta enorme lacuna do SNS. Desde então, empenhou-se em dar um contributo para amenizar este drama assistencial e social. Encontrou disponibilidade de várias Câmaras Municipais para participarem nesta cruzada solidária. De realçar também a colaboração monetária prestada por outras Instituições de Solidariedade Social e pelas Unidades Clínicas, que fazem as operações com rigor técnico e a preços aceitáveis. 

Com este programa em marcha, no final deste ano teremos restituído a visão a quatro centenas de pessoas com baixos rendimentos. É um pequeno contributo para resolver tão magno problema. Mas estamos dispostos a prosseguir! Esperamos que este exemplo sirva para pôr em marcha uma imparável corrente solidária, face ao drama que passa despercebido na comunidade.

Nunca esquecerei o abraço apertado que me foi dado por uma senhora, depois de lhe ser restituída a visão. Antes, não via quase nada, tropeçava em tudo o que encontrava pela frente. Certo dia, foi numa vela acesa: provocou um incêndio na sua casa. Felizmente foi socorrida e saiu de lá viva.

Os autarcas têm-me reportado o reconhecimento dos beneficiados com a operação, que voltaram a visualizar o ambiente que os rodeia e o terreno que pisam, que colocaram de lado os óculos e, repetidamente, exclamam: «Já não vejo tudo a preto e branco». 

A Câmara Municipal de Figueira de Castelo Rodrigo só agora aderiu a esta campanha. Nunca é tarde para abraçar uma nobre causa. Com base no protocolo assinado já foram beneficiados 14 conterrâneos e até ao fim de Dezembro serão operados mais 10. No próximo ano cá estaremos para continuar a dar visão a mais alguns munícipes.