Nélida Pinõn: “A língua portuguesa é tudo para mim. Não há nada que ame mais na vida”

Aos 84 anos, a primeira mulher a assumir a presidência da Academia Brasileira de Letras decidiu explorar o seu lado ‘peninsular’ e não somente a ‘brasilidade’ com a permanência em Portugal. Volvido um ano, lançou Um dia chegarei a Sagres, através do qual narra a história de Mateus. Tal como ela, Mateus é fascinado pelas…

Nélida Pinõn: “A língua portuguesa é tudo para mim. Não há nada que ame mais na vida”

Nasceu a 3 de maio de 1937. O nome Nélida é anagrama do nome do seu avô, Daniel. A sua família é originária da Galiza, mas está radicada no Brasil há décadas. Quais são as suas primeiras memórias marcantes?

Não se trata só de ser galega, mas sim peninsular, de certo modo. Acredito que pelo facto de ser de uma família imigrante que atravessou o Atlântico deu-me essa dimensão atlântica também. Fez-me crer que a cultura que desenvolvia em casa era uma que me abria as portas de todas as civilizações. Desde cedo, achei que tinha dupla cultura: era brasileira, galega e tudo o mais que podia ser ao mesmo tempo. Era aquilo que abraçava no mundo. Foi extraordinário. Fui sempre uma apaixonada pela História, não havia limite para mim: se houvesse, estaria a limitar a minha imaginação. E esta empurrou-me ainda mais a conhecer o mundo. E quis a vida que eu tivesse recursos que facilitaram esse transbordo, essa aventura humana. Estudei num colégio alemão: porquê? Não sei, puseram-me lá. Estudei sob a tutela dos Beneditinos. Discutia sobre Lutero com as madres. Desde cedo, tive uma atração profunda por diversas personalidades como o rei Carlos V. Tudo isso foi ensejando que fosse além do que eu podia. E tem mais: quando era menina, a minha mãe levava-me ao teatro e achava uma maravilha. O palco era um lugar mágico. Tudo ocorria ali. O que o humano não conseguia traduzir no palco, é porque era falso, indevido e insuficiente. Aí, de repente, passei a ir a um teatro municipal grande e descobri que o mundo é pautado pelo melodrama. Nada pode ser “nem mais ridículo”, propício aos equívocos humanos do que o melodrama. Uma série de coisas determinou que fosse essa menina de então que recebeu a notícia dos pais de que iriam para a Galiza. Lá fomos nós com uma bagagem quase de peregrinos: Espanha e Portugal viviam na miséria em consequência da Guerra Civil e pelas razões políticas, não conseguiram ser apoiados pelo Plano Marshall. Quando essa menina chega a Vigo com aquele povo todo lá em baixo, parecia que era o menino Jesus deixado na borda do Nilo e uma escrava de uma princesa me tinha encontrado. Chegámos e eles gritavam: detestei aquela gente, aquela língua parecia-me gutural. E todas as mulheres estavam de negro: era um luto eterno. Percebi que não cessavam a corrente da dor. Aí, disse «Ai meu Deus, que gente é essa?». Até que cheguei perto da aldeia do meu pai e fiquei muito horrorizada. Como chovia muito, não se conseguia passar pelo caminho. Tivemos de ir para casa da minha avó de carro de boi. Mas aí ocorreu um fenómeno amoroso: eu olhei para uma ponte medieval e fiquei emocionadíssima pela intransigente beleza dela. É como se naquele momento viajasse pelos tempos todos, tudo aquilo que queria fazer! Apaixonei-me e havia, em seguida, uma capelinha. Senti um assombro amoroso que não tem nome, que se fraciona em qualquer momento, mas que também se recompõe no momento seguinte. E pensei: «Vou amar a Galiza para sempre». A menina solar que nada tinha a ver com aquele país imaginário. A Península Ibérica ficou comigo para sempre. Tudo isso junto leva-me ao fenómeno da língua portuguesa: tenho a sensação de que, até hoje, eu vivo uma aventura permanente com ela. Tenho a sensação de que percorri o mesmo caminho do início do nascimento dessa língua e, por isso, enveredei pelos seus rios. São várias razões, mas todas elas naturais. Fui amiga da Natália Correia, uma portuguesa brava, e, por vezes, ela ficava aborrecida porque não aceitava como eu podia gostar tanto do mundo anglo-saxónico. E eu dizia: «Não é incompatível, abraço o mundo como ele me chega». Tive formação germânica, anglo-saxónica e profundamente espanhola e portuguesa. 

Ainda muito pequena, escrevia pequenas histórias e vendia-as ao seu pai e a outros familiares. Recorda-se do primeiro texto que escreveu ou daquele em que, por exemplo, trabalhou com mais afinco, em criança?

Queria ser escritora. Não sei como nem porquê, só sabia que amava as histórias. Sobretudo, as narrativas impossíveis e quem sabe até sem lógica. Porque a ausência da lógica dava mais força à história. E eu achava que aquelas histórias nasciam de uma experiência vivida e não inventada. Então, queria ser narradora para poder desfrutar das histórias que lia. Depois, dei-me conta de que não era assim: a história nascia de uma invenção daquele que a contava. E isso entusiasmou-me profundamente. Contava as histórias e pensava «O meu pai vai gostar». Por vezes, desenhava bandeirinhas pequeninas também. Explorei os direitos de autor quase, a testar se ele gostava: quem compra, tem de gostar. De certo modo, competia com o meu pai porque quando ele chegava em casa, precipitava-me a narrar-lhe aquilo que lera e aprendera. Queria provar que sabia tanto quanto ele. E a literatura é um veículo de aprendizagem. Cheguei à literatura pela necessidade de comprovar que o mundo existia e que a vida era narrada. 

Qual foi a primeira história que escreveu?

Não me lembro, mas tenho duas guardadas. Por exemplo, forçava o meu pai a reconhecer que eu era escritora. Ele dizia: «Não és, minha filha», e eu insistia. Se íamos a um hotel, queria que ele me registasse como escritora. Ele achava-me bastante extravagante. Estávamos numa estação de águas em São Lourenço, certo dia, e quem ia lá muito era o Getúlio Vargas. Ele vinha por uma das aldeias e, nisso, não se sabe porquê, desprendi-me da mão do meu pai e fui até ao Presidente. Lancei-lhe os braços e ele levou um susto, mas pegou-me ao colo e deu-me um beijo. O meu pai foi a correr pedir desculpa e o presidente disse «Não, a menina é linda». Claro, aproveitou o momento político!

Os seus pais sempre a incentivaram a fomentar essas paixões. As viagens que fez também tiveram um impacto na sua criação literária por ter alargado os seus horizontes?

Era apaixonada pelas aventuras. Por exemplo, há um facto que marcou a minha vida para sempre: houve um autor alemão, Karl May, do século XIX, e era um sucesso extraordinário. Devia ser um dos mais famosos e vendidos no seu tempo. E ele nunca tinha ido à chamada América do Norte, mas publicava livros passados naquele continente. Tanto que tem outros livros passados no Oriente Médio. Apaixonei-me pela série dos EUA. Ele criou personagens clássicas do mundo da aventura, sobretudo, duas delas: um índio – Winnetou – que fez uma grande amizade com um estudioso alemão – Old Shatterhand – que foi parar à América. Eles tornam-se inseparáveis, percorrem o país, vivem as mais trepidantes aventuras. Há um momento em que estão a cavalo e o alemão vira-se para o índio e diz «Veja qual é a distância entre nós e os bandidos que estamos a perseguir» e a dignidade do Winnetou era enorme. Desce, ajoelha-se e põe o ouvido no chão. Fica algum tempo assim, põe-se de pé e diz para o Old Shatterhand, com aquela voz pousada, «São tantos, estão a cavalo todos, um deles está num garanhão». Analisa os bichos e diz simplesmente: «A um deles falta o braço esquerdo». É extraordinário. Porquê? Porque a pisada ali era mais leve. Aquilo abriu-me as portas para a minha sensibilidade, a capacidade de inventar e entender o que fosse. E percebi então que o mundo é verosímil e inverosímil: tudo pode ser escrito por quem sabe inventar um mundo. 

E a sua atenção ao detalhe deriva dessa experiência?

Eu tenho isso: quando faço os meus livros, as relações que estabeleço entre as pessoas têm de superar as diferenças e desigualdades. Têm de ir além da minha sensibilidade musical, sanguínea, histórica… De tudo o que eu sei. E outra coisa que também me ajuda muito é estabelecer analogias: não há estranheza no humano. E elas dão-me uma visão poética do mundo. Mesmo quando penso que mantenho uma distância da criação epicêntrica essencial, sei que estou perto do objeto da minha criação porque empenho-me em perseguir aquilo que me pertence: escrever. 

E afasta-se do fosso que é normalmente entre as pessoas e transposto para a literatura.

É verdade. Se eu admitir a distância, admito a impossibilidade. Tenho de acreditar que sou capaz de enfrentar todos os dissabores sem medo, não estou autorizada a senti-lo! Ao mesmo tempo, não posso dar-me ao luxo da arrogância: tenho de ser aquela menina pequenina que começou a escrever quando nada ensejava que isso fosse possível. 

Quando pensa nela, acha que ficaria orgulhosa de si?

Engraçado… Ela era simpática porque era obediente, amava a família e devo ser uma das poucas escritoras que o faz. Há a sensação de que fazer isso é uma coisa antiga, mas eu acho que a família assegura a minha genealogia, inclusivamente, a literária. Perco os meus liames sem ela. Como é que vou saber quem sou se não souber quem eles são? Ainda hoje, as pessoas dizem que para me agradarem, as pessoas devem falar de Homero, Machado de Assis – costumo dizer que se ele existiu, o Brasil é possível – e o meu velho avô Daniel! O que quero dizer com isso é que uma família não é um fenómeno gratuito: põe sangue, vaidades, motivações, razões de viver, histórias na sua veia. Como é que vou saber da minha história se não sei a dela? Sobretudo, no meu caso, de uma que veio de longe. Sou filha do Atlântico. Sou uma narradora filha da emigração, não precisando de falar de emigração! Posso escrever sobre Nova Iorque, Paris, o que seja, mas sei que sou uma mulher marcada pela emigração e acho extraordinário o conceito de ser alguém que veio de longe. Como escritores, não podemos expulsar o mundo de nós, é impossível. Podemos ser até tentados a livrar-nos do mundo, porque não é grato, mas isso não pode acontecer porque senão perdemos o dom da narrativa.

Mas há quem escreva para se encontrar. Por exemplo, pessoas que até têm famílias disfuncionais e recorrem à escrita como escape.

Eu não sinto a literatura em mim como um desabafo. Podia ser assim uma carência, uma manifestação de ausência de coisas essenciais que não tive… Mas não. Sinto que procuro tudo, a minha curiosidade é infindável, mas não tem esse sentido de encontrar Deus, entender x ou y pessoa… É como se, de repente, seguisse as pegadas no mundo com uma certa “mínima” naturalidade porque me cabe isso como ser humano.

Como é que decidiu enveredar pelo curso de Jornalismo, da Faculdade de Filosofia da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro? Queria escrever, mas garantir que tinha uma profissão menos incerta, digamos assim, do que a escrita literária a tempo inteiro?

Quis ser jornalista porque senti que conhecia muita literatura. Lera muito e os livros eram meus amigos e irmãos, contavam-me tudo aquilo que eu não sabia. Não queria, por exemplo, fazer um curso de Letras. Queria aquilo que me podia faltar, embora lesse todos os jornais para competir com o meu pai. Lembro-me de me contarem que ele insistiu com a minha mãe que queria ter um menino e ela perguntou-lhe o motivo. E ele respondeu: «Queria um filho famoso que tivesse nome, as meninas não vão fazer nada, coitadinhas». Quando soube disso, devo ter pensado «Você vai ver!». Quando eu nasci, ele viveu numa paixão por mim e eu por ele. Escrevia coisas pequeninas, ele guardava no bolso e, quando andava na rua com ele, pegava nos papéis e mostrava aos amigos. Exibia-me imenso! Mandava-me flores aos domingos depois dos 14 anos e mandou-me para a Europa. «Para minha tristeza, a minha filha gosta dos ingleses!», dizia ele. Eu lia tudo e discutia tudo com o meu pai, até desporto! Achava, de algum modo, que estava bem completa no que se referia a ser escritora. Aí eu pensei: «Preciso de ir para a rua. Vai dar-me detalhes e dados que me faltam». E decidi fazer Jornalismo. Ou seja, fui para a rua fazer reportagens e também ficava na redação a aprender com os grandes jornalistas. Depois, resolvi fazer um ano de História e dediquei-me à Literatura exclusivamente. E os professores diziam «Você inventa muito, heim!?» e eu perguntava «Mas esse não é a origem da História?» [risos]. E ainda tive outra paixão: Teologia. Achava extraordinário as brigas entre Lutero e Carlos V, os grandes teólogos… Gostava demais! Sou muito agradecida porque entendi que só havia uma maneira de chegar à literatura: através de uma paixão total, estudando, lendo, errando muito, tentando acertar o tempo todo. Desde cedo, fazia sete, oito, nove, dez versões de um texto! Ainda hoje, tenho metros de papel dos rascunhos que faço antes das versões finais dos livros! 

Como é que começou o seu processo de escrita?

Quando pedi ao meu pai uma máquinazinha de escrever, ele disse: «Então, vai à cidade, procura e diz-me depois». Fui a uma loja chamada Edison. Cheguei lá, olhei e vi uma máquina e aí disse ao senhor: «Adorei essa máquina. Posso levá-la para casa?». Olha a ingenuidade. Tudo aquilo que se acha que não pode acontecer, acontece comigo!

Ele ofereceu-lhe a máquina. Exato!

Ele ficou meio tonto de repente, mas disse «Leva!». Eu peguei na máquina e entrei num autocarro para ir para casa. Cheguei lá e o meu pai ficou apavorado. «Minha filha, ele deu-te isso? O que é que ele fez com você?» e eu disse «Ele foi um amor comigo. Pedi e ele deu». O meu pai foi à loja falar com ele: «O senhor é um comerciante como eu. Como é que faz isso? Como é que dá uma máquina a uma menina daquelas que nem sabia quem era?» e ele respondeu «Esse rosto é especial, ela nunca faria nada de mal». Já adulta, fui a um advogado para ajudar uma prima que estava a divorciar-se. Chegando lá, o doutor, muito fino, conversa vai, conversa vem, não sei como disse que era espírita. E continuou: «Sou um grande admirador de um dos maiores espíritas do Brasil que, por sinal, tinha uma loja na cidade» e eu perguntei e ele respondeu qual era: «A Edison». Eu contei-lhe a história e ele percebeu de imediato: «Claro, ele viu quem a senhora ia ser». 

Estreou-se na literatura, aos 24 anos, com o romance Guia-mapa de Gabriel Arcanjo, publicado em 1961, que tem como temas o pecado, o perdão e a relação dos mortais com Deus. O que a levou a desenvolver estas ideias?

Fiz a primeira versão em Friburgo. Os meus pais e os meus tios alugaram uma casa simples lá e lembro-me de que eram as férias e decidi «Vou fazer esse livro agora». Tenho textos em que explico aquilo que queria. Sobretudo, uma coisa que foi muito importante juntamente com a questão do Karl May: devia ter uns 15 anos e fui à Bahia. O meu pai, galego, ficou no Rio de Janeiro, mas o meu tio Manolo ficou lá. Queria muito que fosse passar uma temporada na Bahia e lá fui eu. Os meus primos todos felizes, conheci o Jorge Amado… Com esse meu jeito, é claro que falei com todo o mundo! [risos] Já dizia que era escritora e eles aceitavam-me. E aí, disse ao meu primo Serafim, que me acompanhava o tempo todo: «Quero ver os prostíbulos da Bahia». Ele ficou horrorizado: «Nélida, não posso fazer isso!». Achava um absurdo e eu insisti: «Vamos, pelo menos, perto! Posso ficar na porta. Quero ver o mundo!». Pois bem, ele levou-me. E aquela história deve ter ficado na minha cabeça porque, quando cheguei ao Rio de Janeiro, escrevi uma história em que um rapaz se encantava por uma jovem prostituta e queria que ela fosse dele. Ela não queria e achava que era um direito dela dizer não porque o facto de ser prostituta não a obrigava a aceitar: era dona do corpo dela, exercia o ofício como queria. Ela sobe uma ladeira e eu digo assim: «Uma ladeira íngreme». Não tem nada demais, mas eu, como escritora modestinha, achei um horror. Não porque era redundante, mas é que no meu instinto poético, não queria passar a vida a fazer da literatura uma banalidade e despi-la do seu teor poético e das suas envergaduras secretas. Aí, não escrevi mais histórias durante alguns anos. O que é que eu fazia: exercícios. Tinha rádio e escrevia às estações pedindo músicas. Nem sempre me concediam isso, mas eu ficava no meu escritóriozinho a postos e, quando começavam os programas, escrevia e foi uma das maiores experiências da minha vida. Não obedecia a nenhuma meta ou obrigação histórica, académica… Nada! Escrevia aquilo que alguma coisa secreta me ditava. Um tempo depois eu mandei um desses textos, chamado “Verde”, para um suplemento literário de um jornal. E eles publicaram. Quero dizer com isso que a música foi essencial na minha vida. O meu último livro foi todo escrito ouvindo “A Cavalgada das Valquírias” de Richard Wagner. 

Em 1963, lançou Madeira feita de cruz e Fundador em 1969. Como é que foi começar a ter destaque no panorama literário exatamente na altura em que começou a ditadura militar brasileira?

Já tinha tido sucesso antes, mas tive um grande desânimo, de facto. Ao mesmo tempo teve um lado muito engraçado: pensei «não vou escrever mais». Pela primeira e única vez tive a tentação de abandonar a literatura. Mas aí não sabia o que havia de fazer. Já tinha visitado o Amazonas e fiquei fascinada. E, na margem do rio, estava uma casinha, uma escola, uma professorinha com uma roupa de pobre e uma bandeira do Brasil. E ela cantando e ensinando as crianças. Fiquei tão emocionada que comecei a chorar. Senti a minha brasilidade total. Mais adiante, quando quis desistir, ponderei ir para o Amazonas dar aulas de Criação Literária e Brasilidade. Só que comecei a escrever o romance Tebas do meu coração, que acho que é um livro importante. É uma crítica quase histriónica do Brasil. Disse: «Mãe, a senhora ajuda-me? Não quero ficar mais aqui, não aguento». E fui para Barcelona, fiquei lá um ano e tal. Foi aí que vivi integralmente o famoso boom: conhecia o Vargas Llosa de Nova Iorque, mas fiz mais amizades. 

O Governo impunha censura prévia à imprensa, às artes e aos espetáculos. Alguma vez foi vítima deste flagelo?

Fui, mas poucas pessoas souberam disso. Fiz um livro, A casa da paixão, e entreguei-o ao Instituto do Livro que estava sendo dirigido por uma grande amiga minha. Eles facilitavam tudo e ela e o grupo dela proibiram o meu livro. E não tive coragem de denunciá-la. Não me arrependo porque, logo depois, dava-me com o argentino Manuel Puig, passou pelo Rio e levei-o a dois editores. E, de repente, não sei se foi o Fernando Sabino ou o Rubem Braga, disse «O que estás a fazer?» e eu respondi «Tenho um livro que ninguém quer publicar». Deixei lá o manuscrito e um ou dois dias depois, estava com a minha mãe, e era domingo de madrugada. Eu gostava de dormir tarde, mas a minha mãe acordou-me e disse que ninguém telefonava àquela hora para dizer um não! O Rubem Braga é um dos grandes cronistas brasileiros e disse: «Nélida, acabei de ler o seu livro. Gostei muito, vou publicar». 

Em 1965, recebeu a bolsa “Leader Grant”, concedida pelo Governo norte-americano, e teve a oportunidade de viajar pelos Estados Unidos. À época, governava o presidente Lyndon Johnson. O que a fascinou na América daquele tempo?

Adorei! Achei uma experiência revolucionária porque as pessoas que eu conhecia no Brasil não tinham noção da vida cultural norte-americana. E eu conhecia a literatura, a pintura, etc. Quando me deparei de perto com o país percebi que, fora os absurdos, tinha uma alta vertigem cultural. O povo do Centro Oeste, por exemplo, exigia que se gastasse dinheiro nas universidades e nas bibliotecas. Tudo aquilo que propiciava o desenvolvimento cultural e político havia por todo o lado. Então, os EUA não eram absolutamente o que os meus amigos pensavam e que eu já sabia que não eram. E deram-me de presente a possibilidade de visitar o país inteiro. Quem controlava toda a minha viagem gostou tanto de mim que me levou a uma das maiores fazendas dos EUA, no Wyoming. Fiquei lá um tempo e aprendi imenso! Permitiu-me retificar o que era necessário e atualizar o que não sabia. Percebi o que era ser-se americano.

Também na década de 60, foi editora assistente da revista Cadernos Brasileiros, nos anos de 1966 e 1967. Como foi essa experiência?

Gostei muito porque fui convidada a lecionar Criação Literária em várias universidades norte-americanas. 

Inaugurou a cadeira de Criação Literária na Faculdade de Letras da UFRJ. Deu cursos na City University of New York, na Columbia University, na Johns Hopkins University em Baltimore, na Universidade Católica de Lima, na Sorbonne, na Universidade Complutense de Madrid e noutras universidade internacionais.

Permitiu-me não somente aperfeiçoar o próprio texto como entender aquilo que sustenta a estética do mesmo. Aprendi e ensinei a montar um edifício narrativo. Tenho a sensação de que vivi demais e acho que todo o mundo pensa assim! Quando me falam de x ou y, até me questiono «Digo ou não digo que conheço?». Por exemplo, tive 18 anos de amizade com a Clarice Lispector. Isto foi tudo possível porque a minha mãe fazia tudo por mim. Dizia sempre: «Só não quero que você seja uma escritora medíocre».

E como é que conseguiu corresponder a essa expectativa?

Para além de tudo aquilo de que já falámos, gosto de trabalhar com a matéria sofrida, lapidada, com o coração humano. Acho que, mesmo em termos de linguagem, a dos pobres é extraordinária. Por exemplo, no Brasil, quando falam, equivocam-se, e têm uma síntese maravilhosa. São capazes de trazer à superfície aqueles vocábulos que se perderam no tempo. No Nordeste brasileiro, vê-se muito isso. E hoje, mais do que nunca, a linguagem corrente fica empobrecida pela repetição. De repente, descobriram a palavra “resiliência”. É um horror! Nunca ninguém usou esta palavra antes! Não inventam, repetem alguma coisa que lhes chegou sem saberem porquê. 

Depois de se ter tornado cada vez mais conhecida, lançando obras como A doce canção de Caetana, em 1987, tornou-se membro da Academia Brasileira de Letras em 1989. Em 1996-1997, tornou-se a primeira mulher, em 100 anos, a presidi-la no ano do seu I Centenário, e primeira mulher a presidir a uma Academia de Letras no mundo. Como é que se sentiu com estas conquistas?

No meu discurso de posse, comecei assim «Sou brasileira recente» por ser de uma família imigrante. E disse que éramos mais novos lá do que as palmeiras! Fui sendo brasileira à medida que me compunha como tal. Esse sentimento assentou muito na minha presidência porque eu estava à frente da língua e da literatura portuguesas! E respondia pelos 100 anos que estavam a ser celebrados. Trabalhava 8-10 horas por dia e dizem que foi um mandato único. Inventei projetos, abri as portas da Academia ao povo e quis convidar todos os grandes chefes de Estado para a festa do centenário. Queria rastrear o desenvolvimento da língua e muitas pessoas, como o António Guterres ou o Mário Soares, disseram que iriam! Devotei-me mesmo e o meu dever moral é ajudar quem quer entrar na Academia, mesmo aqueles candidatos cujo trabalho não aprecio tanto. Sei processos internos que mais ninguém sabe. 

Tanto nos meios académico como literário e jornalístico, sentiu-se discriminada por ser mulher?

Sim. Hoje, já não, mas sinto-me mal de qualquer modo porque as outras mulheres são. Enfrentei os preconceitos com muita delicadeza: não briguei, apenas conversei. «Isso não é assim por isto ou aquilo» e as pessoas escondiam o machismo na minha presença. Sabiam que era uma feminista declarada. Há batalhas campais, exageros, mas entendo os motivos pelos quais surgiram. Antigamente, havia correntes mais cultas e menos grosseiras. A mulher é mãe, deixa um legado da sua feminidade mesmo que morra velha… Vai além daquilo que toda a gente pode pensar! Temos de pensar no nosso papel histórico. Vivemos amores divididos, mas um filho não é da humanidade: primeiro, é da mulher. 

Depois de décadas em que lançou romances, contos, memórias, crónicas, ensaios e até literatura infanto-juvenil, escreveu Um dia chegarei a Sagres. Como é que traçou o enredo da obra e decidiu que a personagem principal seria um camponês?

Decidi escrevê-lo em 2005. Queria fazer algo sobre Portugal. Sempre atualizei as minhas pesquisas, mas tive dificuldade em vir cá. Primeiro, tinha de dispor de recursos para ficar cá um ano. E, entre outras coisas, como trabalhos que já tinha começado, não podia. E um dia vim quando um cachorrinho meu morreu. Escrevi à mão porque estava com muitos problemas de visão e, para além desse esforço, não me podia esquecer das frases anteriores para não se perder o fio à meada. Ia retendo tudo. Foi dificílimo. Muitas pessoas sabiam que estava cá, mas a maioria do meu quotidiano não era conhecido. Por exemplo, ia a Sagres e não avisava ninguém e quando estava exausta via o rio Tejo. Foram viagens extraordinárias para ver o invisível: se via uma árvore, aquilo que via era o sangue derramado à volta da mesma. Uma vez, passei por um caminho com sete capelas pequeninas e ficava a perguntar «Por onde iria Mateus?», ou seja, colocava-me na pele da minha personagem principal. Esta missão cabia à galega neta do Daniel que nasceu no Brasil.

O facto de ter lançado a obra durante a pandemia teve algum impacto na conexão com os leitores e na vontade destes de adquirirem o livro?

Muitas pessoas compraram o livro nas livrarias, mas depois assinava-os no meu escritório. Apesar de tudo, tenho recebido um feedback muito bom nas redes sociais. E fico muito feliz porque a língua portuguesa é tudo para mim. Não há nada que ame mais na vida. Ficaria cá se tivesse os recursos financeiros necessários, mas a minha vida está toda feita no Brasil.