Cabo Delgado. Os chefes da insurgência

Numa ‘revolta de jovens, pobres’, muitos dos seus líderes vêm da elite de Cabo Delgado, como o sanguinário comandante Abu Surakha.

O rapaz de Mocimboa da Praia que dava pela alcunha de Patrick Vieira, devido ao seu jeito para o futebol, deixou um rasto de morte e destruição no regresso a casa, o ano passado. Vestido de camuflado, com um pano negro escrito em árabe na cabeça e uma AK-47 na mão, este antigo militar tomou a sua cidade comandando um grupo de jovens revoltados, doutrinados ou sem outro futuro que não pegar em armas.

Hoje na casa dos trinta, quarenta anos, o rapaz de Mocimboa da Praia dá por muitos nomes, numa terra onde os cartórios escasseiam. Vizinhos falam de um tal Nuro Saíde, vítimas conhecem-no por Abu Surakha e os seus fiéis por xeique Omar, o ‘rei da floresta’. Já o Departamento de Estado norte-americano identifica-o como Bonomade Machude Omar, Abu Sulayfa ou Ibn Omar, sanguinário comandante operacional dos jiadistas que aterrorizam Cabo Delgado.

Estima-se que Omar conte com entre mil a três mil combatentes, havendo relatos que ora se esconde entre a miséria dos subúrbios de Pemba, ora se refugia na mata, onde mantém pelo menos três mulheres e vários filhos. Tem sido visto a circular de moto durante a noite, com uma lanterna na cabeça, sempre escoltado pelos seus homens de mão.

Desde o início da insurreição, em 2017, que este grupo – conhecido por Al-Shabaab, ou ‘a juventude’, em árabe, e que acabaria por jurar lealdade ao Estado Islâmico – se manteve envolto num véu de secretismo. No entanto, pouco a pouco, à medida que gente raptada escapava, fomos sabendo melhor quem são e de onde vêm estes insurgentes, conhecidos por conduzir brutais ataques de guerrilha, muitos vezes decapitando as vítimas, antes de desaparecerem no mato ou entre a população.

«Aquilo é uma revolta de jovens, pobres», avalia João Feijó, à conversa com o Nascer do SOL. «Mas também há ali muitos que não são pobres. Os líderes são indivíduos extremamente gananciosos, para quem os fins justificam todos os meios, que conseguiram fazer muito dinheiro através da economia ilícita», explica o investigador do Observatório do Meio Rural, que tem estudado a estrutura desta organização jiadista. «O Ibn Omar é o típico individuo que não fazia parte dos mais pobres». 

Justiceiro sanguinário

O homem que viria a ser conhecido por Bonomade Omar não teve um início de vida fácil. Perdeu o pai aos cinco anos, o que levaria a mãe a abandonar a sua aldeia, nos arredores de Palma, e a recomeçar a vida em Mocimboa da Praia, junto com outro homem, que introduziu o enteado no estudo do Islão. Mas não viviam mal, pelo menos comparando com a pobreza em seu redor.

«Ele até fez a 10.ª classe na Escola Secundária Januário Pedro», esclarece Feijó. «E nessa altura quem terminava a escola secundária e ia para Pemba fazer a 12.ª classe já fazia parte de uma elite da sociedade». 

Alto, capaz, bom aluno, calmo e carismático, Omar é lembrado como uma pessoa simples e conversadora pelos seus amigos de juventude que falaram com o repórter Omardine Omar, da Carta de Moçambique.

«Era visto como um jovem exemplar em Mocimboa da Praia, Pemba, Macomia, onde sempre circulou. Principalmente pela sua entrega logo cedo à vida religiosa», diz-nos Omardine. «Era visto como um protetor, que defendia os mais fracos e vulneráveis».

Quem diria que, anos depois, duas jovens raptadas pelos homens de Omar, mantidas cativas na sua própria cidade de Mocimboa da Praia, estariam a contar os horrores que viveram, perante as câmaras da BBC Africa Eye. 

«Quando as mulheres são levadas para Mocimboa, primeiro são tratadas como escravas. Cozinham, vão buscar água, são levadas para treino. Depois casam com os Al-Shabaab», relataram, identificando o comandante deste grupo como Abu Surakha. «Ele mata. Ele não tem misericórdia», disse uma delas. «Esse é o verdadeiro sanguinário», assegurou a outra.

O certo é que a reputação de benemérito acompanhou Omar durante anos, atravessando o tempo passou na marinha moçambicana, sendo colocado em Pemba para cumprir o serviço militar obrigatório. Ficou-lhe a instrução e os contactos que cultivou entre militares. Que hoje certamente lhe são muito úteis, enquanto lança emboscadas contra os seus antigos camaradas, muitos dos quais se queixam que o inimigo parece estar sempre um passo à frente.

Quando prosseguiu os seus estudos, Omar, um centro-campista talentoso, assegura o jornalista da Carta de Moçambique, nunca abandonou a sua paixão pelo futebol, sendo presença recorrente nos campeonatos entre bairros e distritos.

Talvez tenha sido nessas lides que Omar aprofundou a sua amizade com Mustafá, outro jogador de futebol oriundo de Mocimboa da Praia, apontado por João Feijó como um dos principais tenentes do comandante da Al-Shabaab. Aliás, no ataque a Palma, este ano, que paralisou a prospeção da petrolífera Total, chamando a atenção do mundo, Mustafá foi visto a selecionar os cativos do grupo, escolhendo-os em função de quão úteis seriam. A prioridade eram jovens com serviço militar cumprido, médicos, enfermeiros, mecânicos ou motoristas

Dinheiro misterioso

Dedicado a vender hortícolas e roupa no mercado de Pemba, o jovem Omar acaba por desaparecer de Cabo Delgado. Seguira para Tanzânia, como tantos outros jovens moçambicanos ligados à Africa Muslim, uma organização religiosa que apoiava o estudo do Alcorão a nível superior no estrangeiro. Esta organização «tinha muitos serviços de caridade. Apoiaram muitos jovens», salienta Omardine. «Hoje alguns são grandes líder religiosos. Outros enveredaram pelo mesmo caminho que o Bonomade». 

Omar voltou um homem diferente. Subitamente, criou uma mesquita em Mocimboa da Praia, montou um negócio de quinquilharias, estava sempre cheio de dinheiro de origem misteriosa, contratava muitos jovens desamparados, pagando-lhes um salário muito superior ao normal na região. Pelo meio, sacrificava cabras recorrentemente, oferecendo carcaças aos mais pobres. E pregava uma versão extremista do Islão, comum noutros países, mas estranha em Moçambique, onde gente de diferentes religiões vive lado a lado em paz há séculos. Os líderes religiosos locais começaram a ficar cada vez mais preocupados.

Contudo, numa província com uma taxa de natalidade acima dos cinco filhos, onde mais de metade da população tem menos de 16 anos, o que não faltavam eram jovens desesperados, dispostos a ouvir líderes generosos como Omar.

«O norte de Moçambique tem potencial agrícola, mas os mercados estão completamente desregulados e desestruturados, não há vias de acesso, não há apoios», explica João Feijó. «Há muitos jovens com 16 anos, quando se espera que já sejam adultos, mas não são adultos no que significa ser adulto, no sentido de terem uma atividade que lhes dê rendimentos e dignidade, que lhes permita formar família».

«Ao mesmo tempo, Cabo Delgado entra nas rotas de venda ilegal de madeira, marfim, pedras preciosas», continua o investigador. A solução para a miséria tornou-se óbvia. «A única alternativa que tinham era viver do setor ilegal, até 2015, 2016». É nessa altura que as autoridades moçambicanas, cronicamente ausentes na região, lançam uma série de brutais operações contra o tráfico, reprimindo caçadores, madeireiros e garimpeiros ilegais, enquanto polícias e dirigentes locais aproveitava para exigir subornos. São operações que coincidem com o início da insurgência, enfurecendo a população, mas também gente da elite ligada ao comércio ilegal, como Omar. «Enfrentaram o oportunismo dos agentes do Estado, ficaram muito revoltados. E viram isto como uma forma de expressão da sua revolta», remata Feijó.