Timor. Um melancólico Portugal que já não há

Na escola, a professora ensina português a alunos desatentos; no largo de terra batida, os homens juntam-se na excitação do sangue das lutas de galos; para o interior, multiplicam-se igrejas pequenas em vilas minúsculas; o mar é a testemunha azul de um tempo que parece ter parado.

Em Dempasar chovia. Rapazinhos corriam de um lado para o outro alugando a proteção dos seus guarda-chuvas enormes aos gomos de cores chocantes. O céu desfez-se em água, em trovões e relâmpagos. A tempestade repetiu-se pelos dias seguintes. Atiraria, no dia em que viajei, o pequeno avião da Merpati que me levou a Timor de um lado para o outro como um brinquedo de criança, lambeu-lhe a fuselagem com línguas de coriscos. Uma senhora francesa das Nações Unidas gritaria de cabeça perdida aos meus ouvidos: «Mais c’est monstrueux! Quel orage terrible! Bon Dieu!». E rezou durante toda a hora que se seguiu. Mas isso é só amanhã. Em Dempasar corro também eu a esconder-me da tempestade, procurando um táxi pelo meio dos veículos cheios que se entrecruzam nas ruas que parecem vespeiros, procurando alguém que me leve no caminho do mar e de Sanur onde, pela manhã, reencontrei o sol de Bali.

Curiosas formas de dragões vermelhos e de pássaros negros vogam por sobre os barcos assustando as andorinhas que esvoaçam enlouquecidas ao longo da praia como bandos de gafanhotos. Quando o vento pára, de repente, os papagaios de papel mergulham desamparados para logo uma brisa os devolver ao seu lugar de vigilância vertical.

Amolecidas pelo calor, as rãs aproveitam a frescura do fim da tarde para saírem do seu refúgio de árvores. Encontram no alcatrão morno o conforto das temperaturas quentes. Até que os pneus dos automóveis as reduzam a uma massa informe de curtos estertores. Estendo-me na areia, o corpo necessitando de descanso, as costas doem-me de posições desconfortáveis. As proas dos barcos de pesca arregalam-me os olhos desenhados em fundos policromos. Os morcegos desprendem-se dos ramos dos frangipanis como folhas mortas em gestos de papel.

Cá de cima vejo: ilhas recortadas como dedos à força de ventos; ilhas redondas em circunferências desenhadas por meninos trapalhões; ilhas largas e estreitas polvilhadas por montanhas que fumegam; ilhas com casas por todo o lado e ilhas sem ninguém. Em seu redor, o mar muda de cor: azul claro – tão claro que os olhos doem só de vê-lo. Recantos de areia branca, profundezas escuras que escondem certamente qualquer coisa; manchas verdes de corais dissolvidos. Díli espera-me para sudeste. 

Os galos de Díli 

O homem sentado à minha direita, entre mim e o condutor do mikrolet, vai bêbado. Oferece-me a todo o momento a garrafa de toddy, a cerveja feita com leite de coco, e que eu recuso. Aponta para o saco das máquinas fotográficas e pergunta:

–  Money?

Tem um brilho ávido nos olhos. Quando lhe mostro o conteúdo do saco, desinteressa-se. A cabeça tomba-lhe para a frente e adormece um sono brusco, interrompido volta e meia para cuspir pela janela uma saliva escura, esticando a cabeça pela frente da minha. Tem uma cara pouco comum, o nariz largo, o cabelo comprido amarrado atrás com uma fita cor-de-rosa, um brinco de ouro na orelha esquerda e uns óculos escuros que mal lhe tapam o olhar turvo.

Um movimento inusitado nas ruas chama-me a atenção. Peço para parar, quero sair. Vou atrás das pessoas que se dirigem para um lugar qualquer que ainda não descobri. Caminho por ruas largas, passo por fachadas de edifícios destruídos, vejo buracos de bala perdidos nos muros. Num largo pequeno de terra batida, homens e rapazes juntam-se num círculo dentro do qual outros dois homens apertam nos braços galos inquietos. Não há mulheres. Há a febre das apostas e do sangue. O sol está a pino, o largo sem sombras. No momento certo, os homens esfregam a cabeça dos galos uma na outra. Em movimentos calculados injetam-lhes o ódio até que os pousam no terreiro, frente a frente, para que tudo se decida em segundos. Saltos, movimentos esvoaçados, bicadas violentas. Uma excitação incontrolável toma conta de toda a gente. Ouvem-se gritos, vozes alteradas, princípios de discussões. O galo branco cai de borco, tingido de encarnado. O sangue sai-lhe aos borbotões de um golpe no pescoço. O proprietário do galo castanho beija o animal na crista, os amigos rodeiam-no, felicitam-no, dois homens e dois galos apressam-se a tomar o lugar dos anteriores, a dança repete-se e repetir-se-á ainda outra e outra e outra vez. Vão chegando mais homens com mais galos debaixo dos braços. Os vencidos saem com os bichos pendurados pelas patas, escorrendo sangue para o chão. Durante uma hora, uma hora e meia, quantos galos morrem? Vinte? Trinta? Quanto dinheiro se perde? Quanto se ganha? Os galos são mudos. Nenhum deles anuncia auroras. Só vitória ou morte. Feridas abertas, gestos de raiva, risos brutos. O galo negro abre as asas em ameaça; novo galo branco, de uma brancura ainda por sujar, fita-o sem cuidar do aviso que lhe é feito. Um silêncio, de repente. Um sussurro de asas, um golpe em ziguezague que parece feito em câmara lenta, um risco brilhante e vermelho no preto luzidio, olhos vagos, tantas caras encostadas umas às outras espreitando tudo, o galo branco arrasta-se na terra encarniçada, desprezando ameaças negras levantando a cabeça no seu gesto assassino e vertical, o negro rasgado como papel, penas que se soltam, mais gritos que se desprendem, o sol mais a pino do que nunca queimando tudo, magoando-me o crânio, um estertor escuro e o branco finalmente sujo de um sangue que não é o seu.

Por detrás do círculo dos homens, os meninos espreitam curiosos. Sorriem-me e dizem:

– Bô tárdi.

E continuam a sorrir.

À medida que retomo o caminho formam um grupo atrás de mim. Apontam-me soltando gargalhadas, troçam de qualquer coisa que não consigo adivinhar, talvez dos meus calções largos, talvez da minha figura derretida pela torreira do meio-dia. Rio-me com eles. Meninos que há tão pouco tempo não dormiam de noite, acordados do seu sono pela secura dos tiros, meninos aos quais deceparam a infância e que se habituaram ao choro dos pais e às mortes dos irmãos, merecem rir, rir muito, rir de qualquer coisa. Riem-se de mim e eu rio-me também.

Nas traseiras do Basar Comoro, o Echo Tango ganha vida com o cair da noite. Alguns australianos bebem cerveja pelas garrafas, funcionários das Nações Unidas chegam na importância dos seus jipes, rapazes e raparigas trocam conversas encostados ao balcão.

À uma hora da tarde todo o bazar se submetia à sonolência dos vendedores e dos seus fregueses. Muitos dormiam nas sombras minúsculas das suas barracas abafadas por entre cachos de bananas, tomates, sandors que parecem morangos, malaguetas, inhame, roupa velha e sacolas de plástico. Cães passeavam-se pelas ruas de Díli deixando pender a língua de desidratação, os barcos pareciam abandonados na baía, a ilha de Ataúro desaparecia no horizonte engolida pela névoa do calor, porcos negros atravessam a estrada atrapalhando o movimento dos táxis e dos mikrolets. 

Talvez uma brisa tenha soprado reconfortante por entre os tamarindos espalhando pelo chão as flores vermelhas das acácias, mas a memória não me esclarece. Por todo o lado, as cicatrizes da guerra. O Bairro do Farol já mostra vivendas reconstruídas e jardins cuidados. Sentei-me no muro em que as ondas vêm bater, um rapazinho passou correndo em equilíbrio inconstante, um homem velho sentou-se a meu lado e disse simplesmente: «Sinhôre, vamos fazer um pouco de conversação?».

Ele falava e eu ouvia. Fernando Simões passou dez anos no mato e mais dez anos nas cadeias indonésias. Da Indonésia não quis e não quer nem um avo, nem um grão de arroz. Ao exército de Suharto roubou armas nas ciladas do Comandante Ailantak, com Vicente Reis multiplicou as emboscadas, com Frederico e Ângelo Boavida percorreu quilómetros e quilómetros no interior de Timor-Leste, fugindo, escondendo-se, atacando pela calada, sobrevivendo da maneira mais dura. Tem umas mãos grandes e nodosas, gestos lentos e pacíficos de quem se cansou de guerra. Na Ilha do Crocodilo é ele que me procura. Ele e tantos outros, dia a dia. O jovem Zebi, de Liquiçá, que tem um professor vindo de Portugal que só lhe ensina inglês, encontrou-me à porta de uma mercearia e perguntou respeitoso: «Can you introduce yourself to me, please, mister?». Já não sei de que falámos. De esperanças naturalmente, em Timor é o tempo delas. Estradas em curvas e contracurvas convidam-me até ao fim, nomes suaves atraem-me como cantos de sereia: Manatuto, Laleia, Baucau, Aileu, Ermera, Maubara, Bobonaro, Suai. E eu vou. Todos os caminhos são lentos no pátio das traseiras do velho Império Português que vinha do Minho até aqui nesse tempo em que aprendíamos com a mestra palmatória que o Pico Ramelau era o ponto mais alto de Portugal com dois mil novecentos e sessenta e três metros de altitude, por extenso e sob o olhar severo dos retratos do senhor Presidente da República e do senhor Presidente do Conselho. O Pico Ramelau perdeu o nome embora continue com os seus dois mil novecentos e sessenta e três metros de altitude inalteráveis se bem que talvez já não por extenso. Vi-o entre Ermera e Atsabe, no traçado das montanhas: Gunung Tatamailau. Mulheres com sacos à cabeça saindo do autocarro pequeno na berma de aldeias ainda distantes. A verdura dos vales, o barulho cansado do motor, o bloco escuro dos montes. O mar azul claro de Suai procurando esquecer os massacres ainda tão recentes, a areia preta da praia de Suai Loro, a paz silenciosa de Tilomar, peixes secos dependurados nos espinheiros à espera de fregueses. Estavam 52º quando cheguei a Suai. 52º? Sim, cinquenta e dois. Era essa a temperatura que anunciava solenemente a Rádio Falintil: 52º celsius. Com uma humidade a rondar os 80% é como se mergulhássemos numa sopa grossa, daquelas que se comiam nas cozinhas de mesa de pedra no tempo das avós.

Nestes desencontros de horários e de meridianos dá vontade de perguntar: para onde foram as horas que não vivi? Estarão à minha espera no regresso? Na véspera, o mikrolet entre Díli e Baucau caiu na ravina. Dezoito pessoas esmagadas nos seixos lá de baixo, o mar curioso em ondas tímidas como cães cheirando os cadáveres. Grupos de pessoas discutem a morte e os nomes de quem perdeu a vida. Na esplanada do City Café, na Jalan Jacinto Cândido, os portugueses do contingente militar namoram as professorinhas que vieram de Lisboa. No Trupical Café, assim mesmo, com U, abundam os australianos e neo-zelandeses, no bar do Hotel Turismo os ingleses das delegações diplomáticas recriam ambientes de John Le Carré sem o requinte nem as informações confidencialíssimas que valiam milhares de Libras no tempo da Guerra Fria. A cerveja é cara, o vinho é australiano, a comida é repetitiva. Crianças correm pela poeira das ruas puxando por um fio carrinhos feitos de garrafas de plástico com rodinhas e cheias de areia para lhes assegurar a estabilidade. Há canas espetadas nos passeios com cavalas perfuradas a meio do corpo. Pombas brancas voam por cima da vermelhidão das acácias num país novo onde os velhos se tratam por tio em sinal de respeito.

No cemitério de Stª Cruz, frascos de iogurte vazios estão pousados sobre as campas à espera de uma flor. Os túmulos das crianças são guardados por bonecos de peluche ou por biberões que perderam a utilidade.

– Buca, buca! Polisia!, grita-se no Lapangan Pramuka, o campo dos escuteiros que fica para lá do Sanitário Municipal de Díli. Vozes que vão e vêm ao sabor do movimento da bola, palavras roubadas do português, jogos rijamente disputados ao fim da tarde sob a vigilância atenta do treinador Melo Isaak. Hugo, Daniel, António, Zé, Filipe, José da Conceição. São eles que me convidam para tomar o lugar de ponta-de-lança na sua equipa do Ruza Fuik, e eu que vivi sempre a ilusão do infalível golo corro com eles numa atração de balizas até que toda a baía fique cor-de-laranja e a noite e a sede nos façam parar e prometer que voltaremos no dia seguinte.

Em redor da estátua de Nossa Senhora, em frente ao velho palácio do governador, transformado em sede da missão das Nações Unidas, o palanque está pronto para a missa de domingo. Há flores por toda a parte, folhas de cana entrançadas enfeitam as grades que rodeiam o jardim, cadeiras de plástico branco esperam pelos crentes mais ilustres, aqueles a que Deus presta maior atenção, garotos pequenos brincam à solta sob o olhar condescendente das mães, os homens conversam nos passeios esburacados, a ilha de Ataúro não passa de uma silhueta que desaparece a pouco e pouco. Existe em tudo isto um toque melancólico de um Portugal antigo que já não há.