Os ‘terroristas’ que querem subir o escorrega

Somos muito obedientes, diria que demasiado, e muitas vezes a tendência para a normalidade e para o cumprimento das regras sociais não permite a menor transgressão, mesmo que inocente e inofensiva.

Quando vou com os meus filhos a um parque infantil deparo-me com uma situação caricata: há sempre meninos que querem descer o escorrega e outros que o querem subir e, como o escorrega foi concebido só para descer, assume-se que os que o tentam subir são os malcomportados, os terroristas, os incumpridores e os que o querem descer é que estão bem. Sendo uma situação recorrente, é curioso como se continua a contrariar as subidas ao escorrega. Aliás, lembro-me de já há algumas décadas, em pequena, adorar fazê-lo, de fazermos filas a trepar o escorrega e até de, quando estavam em parques de areia, chegarmos ao topo e saltarmos cá para baixo.

Mas ainda que há muitos anos os pais tenham ‘transgredido as regras’, hoje sentem-se envergonhados e postos em causa quando os filhos tentam fazer o mesmo. Outra situação caricata passa-se quando algumas crianças se divertem a atirar gravilha ou areia para o escorrega e a descerem levando tudo aquilo à frente enquanto os pais lhes ralham desesperados de vergonha perante os olhares recriminatórios dos outros. Não vejo que fosse muito difícil um escorrega poder servir todos os gostos sem que alguns fossem alvo de censura.

Somos muito obedientes, diria que demasiado, e muitas vezes a tendência para a normalidade e para o cumprimento das regras sociais não permite a menor transgressão, mesmo que inocente e inofensiva. No caso do escorrega, mesmo que durante anos, décadas, as crianças tenham mostrado que gostam de usar e explorar um objeto – que, aliás, foi ali colocado para a sua diversão – de outras formas, não há tolerância para admitir maneiras novas de o usar. Mesmo que isso não represente perigo.

Este é só um exemplo de como às vezes se tende a condicionar o comportamento de quem está a crescer, a formar-se e a aprender através do que se julga ser o mais correto, cortando o prazer, a descoberta, a novidade, mesmo que isso não traga consequências negativas para o próprio nem para os outros. Muito pelo contrário. O novo, a experiência, a curiosidade, o desafio – dentro do que é seguro para todos – só podem ser saudáveis. Para o próprio e para quem assiste. E, naturalmente, a questão não é o escorrega em si, mas a tendência cega para a normalidade, o medo da crítica dos outros, a cabeça de chumbo, presa à repetição, à norma, sem deixar espaço para a leveza da novidade, para a liberdade. São as crianças que crescem sem poder explorar algumas das suas aptidões se não são as que constam na lista, no manual ou se fogem ao programa das escolas ou dos adultos, acabando algumas por crescer frustradas a fazer o que esperam de si, em vez de encontrarem a sua criatividade, os seus dons, a sua singularidade.

A repetição, a lógica aristotélica, o medo da crítica, de fazer mal, de fugir à norma, são redutoras e põem em causa o pensamento livre e inovador, a exploração e desenvolvimento de capacidades originais e criadoras. É assim que se avança, que se progride e que se cresce de forma rica e saudável. 
Um Feliz Ano Novo, com menos restrições, a todos os níveis!