Um presente especial

Desde criança, por contingências da vida, nunca tive grandes presentes no Natal. E este período nunca foi para mim rodeado de magia.

Só me lembro de ter posto uma vez o sapatinho na chaminé e ir para a cama cheio de curiosidade sobre o que lá estaria na manhã seguinte. Não deve ter sido grande coisa, pois disso já não tenho qualquer recordação.

O Natal para mim nunca foi uma época mágica. No dia 24 de dezembro íamos à noite a casa dos meus avós paternos, que ficava na Rua Eduardo Coelho, muito próximo da Academia das Ciências, e aí esperávamos pelos familiares que tinham ido à Missa do Galo. Nessa altura servia-se a ceia, os adultos conversavam, e regressávamos a casa, em Belém, por volta das 2h00 da madrugada. Como os meus pais não tinham carro, quem nos ia buscar e levar era o meu tio José Hermano Saraiva, que tinha um grande Buick onde íamos todos como sardinha em lata: ele a mulher e cinco filhos, os meus pais, eu e o meu irmão mais velho (o mais novo ainda não tinha nascido). Quatro adultos e sete crianças!

Depois o meu pai foi para o estrangeiro e essas idas a casa dos meus avós no Natal acabaram. E como a minha mãe não era crente nem dada a convenções ou rituais, as celebrações natalícias em nossa casa começaram a reduzir-se ao mínimo. Fazíamos o presépio, às vezes comprávamos um pinheiro na praça e enfeitávamo-lo, mas ficávamos por aí. Não havia reunião da família (a minha mãe tinha duas irmãs mas davam-se pouco) e também não havia muito dinheiro para presentes.

Por outro lado, comecei a ir de vez em quando passar o Natal a Paris, com o meu pai. E aí as celebrações também se reduziam ao mínimo. Como nessa época ele era comunista, passava ao lado da religião. Não era anticlerical, como os republicanos jacobinos – até porque os pais eram católicos –, mas não ligava nenhuma à Igreja. 
Quanto às prendas, o dinheiro disponível era gasto nas viagens e não sobrava para fantasias.
 
Veio o 25 de Abril, o meu pai regressou do estrangeiro e iniciou-se um novo ciclo. Começámos a ir na véspera de Natal a casa da minha tia Maria Emília – mulher do meu tio Mário, irmão do meu pai – que assumiu a liderança da família e organizava a consoada na sua casa da Quinta da Palma de Baixo, em Sete Rios.

Aí, a família Saraiva juntava-se toda e havia peru, árvore de Natal e presépio. A tia Maria Emília vestia-se de Pai Natal e distribuía as prendas – que, como eram para muita gente, não prestavam para nada: um pente, um saquinho de pano, coisas assim.

Entretanto eu casara, e a minha mulher, pertencendo a uma família numerosa – tinha três irmãs e um irmão – transportava o espírito de união que normalmente caracteriza essas famílias. Passavam sempre o dia de Natal juntos. Assim, depois da consoada com os Saraivas, reuníamo-nos no dia de Natal com os Cabritas em novas festividades. E quando começaram a nascer crianças, o cerimonial de entrega das prendas tornou-se obrigatório. Mas aí, embora ninguém fosse rico, eram prendas a sério. Cada família trazia um saco enorme donde saíam embalagens sem fim – que, ao serem desembrulhadas, encantavam ou desiludiam os mais pequenos, consoante fosse um brinquedo desejado ou uma peça de roupa… 

Pela minha parte – e com todas estas andanças – não me lembro desde criança de ter prendas de Natal que me entusiasmassem. E, valha a verdade, também nunca dei grandes prendas no Natal. Mas este ano tive um presente especial. 

Aqui há tempos, uma filha de Isabel da Nóbrega, falecida este ano, disse-me que a mãe tinha deixado uma lembrança para mim. E entregou-ma agora.

Já contei a minha relação com Isabel da Nóbrega, que conheci no ocaso da vida. Surgiu-me um dia no SOL com a proposta de uma rubrica dedicada a cartas de amor de pessoas célebres. A rubrica fez-se, quando ela ia entregar-me o original ficávamos um tempo à conversa – e daí nasceu uma estima mútua. Mas não esperava de todo que me deixasse alguma ‘herança’. 
Mas deixou. 

É uma bandeja. Não uma bandeja qualquer. Conforme a filha me contou, comprou-a num antiquário, era dourada, pintou-a de preto e colou-lhe uns pedaços de papel pardo recortados com várias formas – destinados, imagine-se, a recolher assinaturas de amigos que a visitavam. Como aqueles livros de honra que se assinam em exposições… E assim tenho hoje em casa uma verdadeira relíquia. Uma peça de museu.

Nos recortes colados sobre o metal pintado de preto reconheço as assinaturas de Henry Miller, Augusto Abelaira, Rogério Paulo, Maria Velho da Costa, Sophia de Mello Breyner Andresen, José Saramago, Eugénio de Andrade, Almeida Faria, Mário Dionísio, Helena Cidade Moura, José Régio, João José Cochofel, Menez, Jorge Pinheiro, Lygia Fagundes Telles, Arpad Szenes, Fiama Hasse Pais Brandão, Alexandre O´Neill, Mário Cesariny, Ilse Losa, Assis Pacheco, Fernando Lopes Graça, Lagoa Henriques, Mário Ventura, Baptista-Bastos e muitos outros cuja letra não consegui decifrar.

Enfim, para lá de Henry Miller, uma plêiade de escritores, poetas e artistas que marcaram uma época muito fecunda da intelectualidade portuguesa – talvez a última antes do advento da sociedade digital, que, nesta área da cultura veio mudar muita coisa.
Alguém teve melhor presente?