Fareed Zakaria: A China não é um país beligerante

Por um lado, ao esforçar-se para abrir os mercados chineses e fazer com que a China importasse mais produtos americanos, Trump promoveu uma interdependência, como Zakaria defende.

1.O problema com a China é o nosso olhar sobre a China. A China não é o Ocidente, é outra a sua mundivisão dominante. O modelo político da China não é o nosso. Em 4000 anos de continuidade histórica (!) a China nunca foi uma democracia. Eis o que o Ocidente deve ter presente na visão da China, na análise da sua realidade interna, no relacionamento com a ela.*

Verifica-se, no entanto, o contrário. A China continua a ser o lugar remoto e inacessível, o outro silencioso – porque não o queremos ver, nem ouvir, nem saber. E assim podermos projetar nele a nossa vontade de poder, as nossas idealizações ou diabolizações, frustrações, remorsos ou medos. A exceção foi esse luminoso breve período de curiosidade e descoberta do séc. XVIII, foram os Jesuítas e alguns filósofos com Leibniz à cabeça, que não a quiseram inventar, mas descobrir. 

Se teimamos em fazer da China um inimigo a China será um inimigo.

2.Também para Fareed Zakaria, apesar da força que a China hoje exibe e do nacionalismo que o regime tem incrementado com Xi Jinping – defensivo e porquê? – «o país não é beligerante e não deve ser tratado apenas como uma ameaça». 

Zakaria refere essa atitude de beligerância dos EUA compartilhada segundo ele pelos dois principais partidos americanos, pelas altas esferas militares, bem como por ‘elementos-chave’ da comunicação social. Para eles a política seguida por Washington desde Nixon/Kissinger até agora relativamente a Pequim falhou. Pelo que os Estados Unidos precisam agora de uma estratégia muito mais dura para ‘conter’ a China, dizem, tal como fizeram nos dias da Guerra Fria para ‘conter’ a União Soviética. Mas a China não é a URSS, está inserida no mundo e é o motor da economia mundial.

A tese de Zakaria é que as coisas são eminentemente mais complexas do que esse consenso alarmante refere. Certamente que a atitude a adotar em relação à China é, também a seus olhos, a questão de política externa mais importante nas próximas décadas. Mas, se não tomarem cuidado, os EUA arriscam-se, nessa área, a um fracasso retumbante. Tal como tenho sugerido. E estão a arrastar a Europa consigo.

Esse novo consenso ignora a história chinesa. Para o grande jornalista, o que os EUA precisam de fazer sobretudo é manter a rede americana de alianças na Ásia, sem antagonizar ainda mais as autoridades chinesas.

O analista não nega, claro, as mudanças, o endurecimento recente do regime, com o presidente Xi Jinping a romper com as políticas de seus antecessores à frente da China. 

De acordo com a orientação traçada por Deng Xiaoping, a China só devia assumir o papel que lhe cumpre no contexto internacional quando estivesse preparada para isso. Esse momento chegou e por várias razões Xi Jinping foi escolhido para ser o protagonista dessa re-emergência na cena internacional. E a China mostra agora as suas potencialidades para o efeito. Não conheceu nenhuma guerra desde 1979, nem travou nenhuma ‘por procuração’. Pelo contrário, é o segundo maior financiador das Nações Unidas e participa em operações de manutenção da paz. Aos olhos de Zakaria, esses elementos positivos provam que a política americana em relação à China foi adequada durante esse meio século, combinando diálogo e dissuasão, abertura e firmeza.

Zakaria conclui que essa política é suficiente e não precisa ser alterada. Segundo ele, os EUA não deveriam tentar isolar a China, muito menos precipitar o fim do seu regime. O que, note-se, os EUA não têm parado de fazer em vários palcos. Anti-Trump, Zakaria reconhece no entanto que ele não visara necessariamente esse objetivo, embora tenha tido uma política hesitante e até contraditória. Por um lado, ao esforçar-se para abrir os mercados chineses e fazer com que a China importasse mais produtos americanos, Trump promoveu uma interdependência, como Zakaria defende. Por outro lado, ao querer isolar a China no campo tecnológico, tentando, por exemplo, promover a ilegalização da Huawei, procurou um isolamento que Zakaria considera inadequado. É melhor a integração da China na comunidade internacional, diz, do que a desintegração dessa comunidade.

Aos olhos de Zakaria, não existe uma estratégia chinesa de longo prazo para substituir os Estados Unidos como a principal potência mundial. A Rússia, por outro lado, parece-lhe uma ameaça maior. Portanto, Zakaria pede continuidade na anterior política externa. Não é apropriado adotar uma política mais dura em relação à China, mas ser paciente e vigilante, demonstrando firmeza e dissuasão, a fim de alcançar um objetivo mutuamente benéfico de paz e prosperidade.** 

3.O período de superação da humilhação terminou. Agora, a grande interrogação é saber como o regime vai continuar a mobilizar o povo e a manter o poder. Com as interferências e a campanha brutal de propaganda que irá atingir o inimaginável, os EUA, com o seguidismo dramático da Europa, estão a condenar o regime à pior solução para os chineses, a que resta sempre aos regimes autoritários para manterem o poder: o nacionalismo.

*Este é o sentido condutor dos textos que tenho escrito e escreverei sobre o tema. 
 
**Fareed Zakaria, The New China Scare. Por que a América não deveria entrar em pânico com seu último desafio, Foreign Affairs, 2019.