Cazaquistão. Caos e Desigualdade

Neste país cheio de urânio, petróleo, bitcoin, arranha-céus e miséria, o Presidente, apoiado pelo Kremlin, promete abrir fogo contra manifestantes. 

No Cazaquistão, flanco sul da Rússia, os manifestantes que derrubaram o Governo, na quarta-feira, enfrentarão fogo real «sem aviso», ordenou o Presidente Kassym-Jomart Tokayev, na sexta-feira. Nesse mesmo dia, forças de segurança cazaques varreram a multidão que tomara o aeroporto internacional de Almaty.

Contaram com o apoio de paraquedistas russos, parte do contingente de cerca de 2500 tropas que compõem a missão de «manutenção da paz» da Organização do Tratado de Segurança Coletiva, mais conhecido por Tratado de Tasquente, uma espécie de NATO da Ásia Central, dominada pela Rússia.

Almaty, a maior cidade do Cazaquistão, parece um cenário de guerra, com blindados e soldados pesadamente armados a patrulhar a praça principal, avançou a Reuters. Comprar comida e bens essenciais não está fácil, com as lojas fechadas e gigantescas filas nas bombas de gasolina. As ruas estão cobertas de destroços, muitos dos habitantes vivem aterrorizados, sobretudo à noite. «Os sons de disparos e explosões lembram as pessoas de quão perigoso pode ser saírem das suas casas», descreveu um correspondente da BBC.

O caos no Cazaquistão, um país com quase 19 milhões de habitantes, dominado por poderosos oligarcas e que raramente faz manchetes, apanhou boa parte do mundo de surpresa. No entanto, a instabilidade rapidamente abalou os mercados internacionais.

Afinal, trata-se do maior produtor mundial de urânio, de um dos grandes produtores mundiais de petróleo – exportando 1,6 milhões de barris por dia, sobretudo para a Europa – e o segundo maior centro de mineração de bitcoin, a seguir aos EUA, ultrapassando a China após esta impor regulações sobre as criptomoedas. Por agora, toda essa mineração ficará parada, dado as autoridades cazaques terem bloqueado a internet, de maneira a impedir os manifestantes de se organizarem. 

Paradoxalmente, estes protestos maciços – que culminaram na tomada da câmara municipal de Almaty, na quarta-feira, entre fogo posto e tiroteio – foram desencadeados por um aumento brutal do preço dos combustíveis, quase para o dobro, sobretudo do butano e propano, mais conhecidos como «combustível dos pobres», num país que produz tanto petróleo. A inflação, que chegou perto dos 9% o ano passado, não ajudou.

«A questão dos combustíveis já tem levado a algumas ações e protestos no passado, mas nunca atingiu esta dimensão», nota Alexandre Guerreiro, à conversa com o Nascer do SOL. Para este investigador de Direito e Segurança Internacional, especializado nas ex-repúblicas soviéticas e antigo oficial de informações do Serviço de Informações Estratégicas de Defesa (SIED), «existe uma noção de que existe desigualdade na distribuição de riqueza, sobretudo relacionada com extração de petróleo. E se o país é produtor, não faz sentido que só uma pequena elite tenha acesso a esses lucros».

No entanto, parece não ser por acaso que todo esse descontentamento explodiu agora, considera Guerreiro. Parte de uma antiga estratégia de Washington para ganhar influência em torno da Rússia, através das chamadas ‘Revoluções Coloridas’.

«As exigências que têm sido feitas por quem organiza este tipo de ações – estamos a falar de pessoas ligadas a uma organização chamada National Endowment for Democracy, dos EUA, que esteve por trás dos protestos na Ucrânia e na Bielorrússia – já não são apenas a retirada do atual poder político. Estão a exigir que o Cazaquistão abandone todas as alianças com a Rússia», avalia o analista. Que deu conta que, nos grupos de Telegram onde se organizam os manifestantes cazaques, muitos dos contactos telefónicos apresentados como uma espécie de linha de apoio são da Ucrânia, um dos mais amargos adversários da Rússia, em guerra civil com separatistas russos desde a queda do regime pró-Kremlin em 2014.

No Cazaquistão, «os métodos são os mesmos» usados na Ucrânia, diz Guerreiro. «Há uma tentativa de abrir caminho a uma guerra civil, consumada num golpe de Estado e numa mudança de regime», alerta. 

Aliás, foi devido aos receios de uma invasão da Ucrânia pela Rússia, que reuniu uns cem mil soldados, tanques, artilharia e avião na sua fronteira, que a NATO e o Kremlin marcaram negociações já para 12 de janeiro. Daí que o Governo russo – através da sua liderança do tratado de Tasquente, respondendo ao pedido de ajuda feito pelo Presidente Tokayev – tenha sido tão rápido a reagir ao caos no Cazaquistão. 

«É natural que a Federação Russa tenha uma necessidade tão premente que esta área regional estabilize rapidamente», nota Sónia Sénica, investigadora do Instituto Português de Relações Internacionais (IPRI), especializada em política russa.

«O timing está apertado, é mais uma nova frente, além da Ucrânia e Bielorrússia», reforça a investigadora do IPRI. «Vai levar a uma posição mais fragilizada no contexto negocial com o Ocidente».

Petróleo e novos ricos

É difícil compreender como é que o regime cazaque, com acesso a tantos recursos energéticos, deixa a subida do preço dos combustíveis chegar ao ponto de causar tanto descontentamento.

«Imagine a Rússia dos anos 90, com Boris Ieltsin a distribuir os bens públicos do Estado por uma elite oligarca», compara Alexandre Guerreiro. «Basicamente, foi o que aconteceu no Cazaquistão a partir do momento em que se tornaram independentes e abandonaram a União Soviética. E ainda hoje isso perdura», explica. «Custa a acreditar, mas se são eles que têm o controlo, naturalmente vão querer ser eles a explorar tudo o que seja recursos naturais, e a ter o máximo de lucro. Mesmo que isso seja em prejuízo da população cazaque».

«Por isso é que em Astana, até pela forma como está construída, vemos uma cidade que parece quase um Dubai, mas adaptado à Ásia Central, núcleo central da oligarquia», diz Guerreiro, recordando a capital do Cazaquistão, mandada edificar do nada, no meio da estepe, por Nursultan Nazarbayev, antecessor de Tokayev, há 25 anos.

Surgiu uma cidade repleta de arranha-céus, centros comerciais luxuosos construídos para fazer lembrar as tendas tradicionais dos cazaques, torres douradas e praias artificiais. «E depois temos o Cazaquistão real», aponta o analista. «Que, não raras vezes, sofre o impacto do que é decidido no Cazaquistão virtual, chamemos-lhe, que é um mundo de novo-riquismo». 

Num país onde 162 magnatas possuem 55% da riqueza, segundo a KPMG, com fortunas vindas sobretudo da exploração mineral, não espanta que os protestos tenham sido despoletados no oeste do país, uma região rica em petróleo, mas cuja maioria dos habitantes beneficia pouco disso.

Não há grandes esperanças de uma solução pacífica para esta crise. «Que género de negociações é que podemos ter com criminosos e assassinos?», retorquiu Tokayev, recusando negociar com a oposição. Está com as costas quentes pelo apoio do Kremlin – entre rumores de um eventual golpe militar, as tropas do Tratado de Tasquente «oferecem um grau de confiança que aqueles, dê as voltas que der, não vão atraiçoar o regime», explica Guerreiro – e aproveitou para reforçar o seu poder, afastando Nazarbayev, que se mantivera como líder do Conselho de Segurança, e demitindo dirigentes leais ao ex-presidente.

«Tivemos de lidar com bandidos armados e bem preparados, locais e estrangeiros. Mais precisamente, com terroristas», acusou o Presidente cazaque. «Por isso temos de destruí-los. E isso será feito em breve».