A arte de narrar a vida tal como ela é

‘Todos nós estávamos maravilhados com ela’ é, talvez, uma das frases que mais se adequam à forma como a escritora – que morreu aos 87 anos, a 23 de dezembro – era encarada. A LUZ falou com os jornalistas e escritores Susana Moreira Marques e Paulo Moura e os académicos norte-americanos Michelle Loris e Louis…

A vida muda rapidamente. A vida muda num instante. Sentas-te para jantar e a vida, como a conheces, termina. A questão da autocomiseração». Estas foram as primeiras frases que Joan Didion escreveu quando começou a narrar o ano em que o marido morreu e a filha foi hospitalizada, sendo que as mesmas serviram de mote para o arranque de O Ano do Pensamento Mágico, aquela que é considerada a sua magnum opus.

No entanto, antes de a escritora ter lançado o livro que viria a ser encarado como um clássico e, consequentemente, uma leitura obrigatória para quem quer desmistificar o luto, já havia trilhado um percurso de mais de 40 anos enquanto jornalista e escritora. Apesar de nunca se ter visto como membro do leque de autores que criaram o Novo Jornalismo, o seu nome sempre surgiu – e continua a surgir – como o único feminino, desta corrente, ao lado dos de Tom Wolfe, Gay Talese, Norman Mailer, Truman Capote e Hunter S. Thompson.

O Jornalismo Literário, também conhecido por Novo Jornalismo – pertencente ao universo das narrativas de não-ficção -, é um «movimento literário dos anos 60 e 70 que testou as fronteiras do jornalismo tradicional e da escrita de não-ficção» como a académica norte-americana Liz Fakazis o descreveu. Ainda que Joan não apreciasse rótulos, torna-se tentador conectá-la à corrente anteriormente mencionada, pois esta foi impulsionada pelas novas realidades dos anos 60 do séc. XX, a necessidade de compreender as mudanças rápidas que ocorriam, a insuficiência da literatura para explicar este panorama e as tendências estéticas que efervesciam.

«Ela escrevia ficção também, foi assim que começou na literatura, mas aquilo que a tornou conhecida foi a não-ficção. Não tem só a ver com o facto de os livros serem bons, mas sim por serem revolucionários e mostrarem que a não-ficção pode ser vista como literatura», aponta a escritora e jornalista freelance Susana Moreira Marques, a única portuguesa que entrevistou Joan. «Lembro-me de que, quando a Svetlana Aleksievitch ganhou o Prémio Nobel da Literatura, pensei ‘Que pena que não ganhou a Joan Didion’. Não é para desmerecer a Svetlana, ela tem um trabalho que não tem nada a ver, parte muito da memória oral, mas realmente o tipo de literatura que a Joan faz… É diferente».

A jornalista que trabalhou como colaboradora do Público, Jornal de Negócios e da BBC World Service, tendo sido também cronista na Antena 1, realça que «o ensaio pessoal são textos de não-ficção com perspetiva forte da primeira pessoa mas não deixam de fazer uma viagem por um tema. E quando digo autobiografia, falo mesmo de memoir. E todos esses géneros da não-ficção não estão reconhecidos em Portugal como literatura. E há muito poucos autores a fazer esse tipo de trabalho. Tanto que, quando há prémios, há de tudo: poesia, dramaturgia, romance… mas nunca para não-ficção literária».

Por isso mesmo, Susana só teve conhecimento da obra de Didion quando viu em cena, em Londres, a adaptação d’O Ano do Pensamento Mágico para teatro, sendo que a mesma viria a ser encenada por Diogo Infante, em 2009, com Eunice Muñoz a interpretar o texto. «Apesar de ter escrito muito e ser uma figura tão importante no Novo Jornalismo, nunca tinha chegado até mim. Fui ler os livros dela muito antes desse… E fiquei completamente fascinada com o trabalho que ela fez nos anos 60 e 70! Definem a voz dela, tornou-se muito marcante e fez algo novo», indica a também autora do livro Agora e na Hora da Nossa Morte, traduzido para inglês, espanhol e francês. 

«O tipo de escrita que ela conseguiu – que hoje é muito mais comum, híbrida, na primeira pessoa, uma mistura de ensaio pessoal e reportagem, a escrita autobiográfica – era novidade naquela época. A maneira como punha em confronto a experiência pessoal com a experiência coletiva de um mundo era inovadora», constata, recordando a passagem por Nova Iorque em que, no Upper East Side, dirigiu-se até um prédio imponente onde encontrou «uma pessoa que tinha os seus fantasmas. Aquela era uma casa cheia de memórias, fotografias, objetos». «Achei muito curioso porque essa necessidade de produzir ou esse contacto com a realidade através da observação, da escrita e do pensamento mantinha-se muito. Até se manifestava de maneira muito prática. Não dava grandes respostas nem fazia grandes considerações sobre o mundo».

Quem se alinha com a vencedora de uma bolsa de criação literária (2019) é uma das suas maiores referências: o repórter freelance e escritor Paulo Moura que fez um pedido especial a Didion quando arrecadou o Grande Prémio de Reportagem da Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento (FLAD) com um conjunto de reportagens sobre a visita do Papa João Paulo II ao Colorado, nos EUA. «Quando ganhei o meu primeiro prémio de jornalismo, era tão fã dela que, quando me disseram que podia convidar qualquer pessoa para me entregar o prémio, escrevi-lhe», sublinha, adiantando que aquela que viria a morrer no passado dia 23 de dezembro – aos 87 anos, vítima de complicações relacionadas com a doença de Parkinson – lhe respondeu «a agradecer, mas a dizer que não podia porque estava a meio da escrita de um livro».

«Nunca tinha ouvido falar dela antes de ir para os EUA. E é muito estranho que ela só tenha três livros traduzidos para português. Uma coisa inovadora dela é escrever sobre si própria, usar a vida como tema. O Ano do Pensamento Mágico é um ensaio pessoal: uma análise, tem um lado ensaístico, com um lado jornalístico de contar uma história sendo que agora há muitos escritores a refletirem sobre a própria vida na ficção, mas isso não existe no jornalismo», observa o repórter que já fez a cobertura de conflitos em países como o Afeganistão, a Argélia, o Iraque ou a Síria e publicou reportagens em revistas como a Harper’s Magazine ou em jornais como o New York Times.

«Há muita literatura de testemunhos que, geralmente, tem um lado sensacionalista. Explora a vítima, os horrores pelos quais passou e é uma literatura quase sempre muito pobre e superficial. Muitas das vezes, é escrita por um jornalista ou ghostwriter, são produtos comerciais. Aquilo que ela fez foi totalmente distinto», reconhece o professor das unidades curriculares como Jornalismo Literário e Jornalismo Internacional na Escola Superior de Comunicação Social, em Lisboa, e Escrita de Viagens, na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa.

Para além de Susana Moreira Marques e Paulo Moura, a professora norte-americana Michelle Loris, que leciona unidades curriculares como a de Ficção Norte-Americana dos séculos XIX e XX na Sacred Heart University, em Fairfield, no estado do Connecticut, realça que «Joan Didion tem sido uma voz definidora da cultura americana: dos seus modos e costumes», sendo que «com a sua morte, lamentamos a perda de uma voz presciente e profética».

«Ela estabeleceu um lugar duradouro e distinto na ficção americana. Como uma californiana de quinta geração descendente de colonos que deixaram o malfadado Donner Party em 1846 e sobreviveram à viagem para a Califórnia, escreveu histórias californianas que capturaram a narrativa de fronteira das mulheres da sua família, todas terrivelmente frágeis, imbuídas de uma auto ilusão e privilégio edénico, enfrentando a desordem moral das suas vidas e da sociedade», correspondendo, deste modo, «a um retrato indelével na ficção americana».

«O Ano do Pensamento Mágico ganhou o National Book Award pela tristeza inexprimível que sentia pela morte do seu marido John Gregory Dunne, e foi seguido de Noites Azuis, obra através da qual lamentou a morte de sua filha Quintana. Choramos a perda de uma voz importante nas letras americanas da nossa geração», declara a académica que, em 1989, publicou Innocence, Loss, and Recovery in the Art of Joan Didion.

«Os primeiros trabalhos de Didion que eu li foram Slouching Toward Bethlehem e The White Album, as suas duas primeiras coleções e não gostei deles e não gostei do estilo. Eram impressionistas e vagamente reacionários, de uma escritora que fazia parte da cena que ela menosprezava. Tudo parecia autocomplacente», confessa Louis Menand, docente na Universidade de Harvard que, em 2002, ganhou o Prémio Pulitzer de História com a obra The Metaphysical Club: A Story of Ideas in America.

«O ensaio que mudou os meus sentimentos sobre ela foi Sentimental Journeys. Lá ela estava realmente a relatar e explicar», diz, destacando o ensaio em que Didion explorou a história e detenção do grupo conhecido por ‘Os Cinco do Central Park’, isto é, os jovens afro-americanos que foram presos após um suposto incidente ‘selvagem’ no qual um homem que corria naquele local foi abusado sexualmente e deixado como morto no canto nordeste do parque.

«Depois disso, gostei de todo o trabalho dela. Ela ficou séria e a sua ideologia política mudou para a esquerda. O objetivo do jornalismo é explicar, não apenas descrever», assume o autor do texto The radicalization of Joan Didion, publicado em agosto de 2015 na New Yorker – revista para a qual escreve desde 1991 – que, nas aulas, continua a dar a conhecer os primeiros ensaios de Didion aos estudantes.

«Conhecia-a e admirava-a. Ela era uma figura formidável no mundo das revistas em que eu trabalhava. Todos nós estávamos maravilhados com ela».