Raquel Martins. “A música vai ser sempre o reflexo dos tempos em que vivemos”

Mudou-se para Inglaterra aos 17 anos e agora começa a dar cartas. Raquel Martins falou com o i sobre o início da sua carreira.

A descontração de Raquel Martins, música portuguesa a viver em Londres, durante a entrevista com o i é um reflexo daquilo que a jovem cantautora, de 22 anos, nos mostrou no seu trabalho de estreia, o EP The Way.
Entre influências de jazz, R&B e bossa nova a portuguesa está a criar uma linguagem musical única e que a coloca no “caminho” para um grande futuro.

Apesar de ainda ter um destaque discreto em Portugal, tendo recolhido fortes elogios de publicações independentes como o Rimas e Batidas, em Inglaterra, país para onde se mudou aos 17 anos, a guitarrista e vocalista tem marcado o seu cunho no circuito de novo jazz, tendo já marcado presença em entrevista e uma sessão musical na BBC Radio e foi uma das confirmações do festival We Out Here do conceituado radialista Gilles Peterson.

A artista é uma das mais jovens promessas da música portuguesa e agora, em conversa com o i, fala sobre os obstáculos que teve de ultrapassar para chegar a The Way e as diferenças entre criar música em Inglaterra e em Portugal.

Gostava de começar esta conversa pelo início da sua ligação com a música. A primeira vez que decidiu aprender a tocar um instrumento foi devido a uma paixão pela música ou foi mais num sentido didático, de aprender algo novo?

Na casa do meu avô, que também gostava de tocar, apesar de ser como um hobby, existia uma guitarra antiga, de origem africana, que tinha sido oferecida pelo seu pai. Era uma guitarra completamente desafinada e com cordas num estado lastimável, mas era um objeto que sempre me intrigou. Levava a guitarra para casa e costumava brincar com várias melodias. Tive que esperar algum tempo até poder ter aulas, mas aproveitei para ir descobrindo a guitarra. Quando cheguei ao quarto ano, finalmente, pude começar a ter uma formação musical mais formal no colégio. Foi um processo natural. Foi algo que partiu de mim, não houve qualquer tipo de pressão dos meus familiares.

A sua família tem uma ligação muito forte à música?

Os membros da minha família sempre gostaram muito de música, principalmente o meu avô. Cresci a ouvir música brasileira e jazz, tanto com ele como com o meu pai. Juntos, analisávamos as letras das músicas durante as viagens de carro. Embora nenhum deles perceba nada de música, num sentido mais teórico, foi um elemento que teve muita importância para mim. Escrevi as minhas primeiras músicas naquela guitarra toda desafinada.

Nenhum deles era profissional?

Não, o meu avô, neste caso, apenas tocava por prazer.

De alguma forma, ele teve alguma responsabilidade pela sua educação musical?

Não diria que me ensinou, eu também estava demasiada preocupada em descobrir por mim mesma e fazer alguma porcaria na guitarra e criar músicas que não faziam sentido nenhum. Ele costumava tocar piano e, depois de ter algumas aulas, começámos a tocar juntos. 

Ainda se lembra do momento em que decidiu dedicar-se a sério à música?

Foi uma decisão que tomei por causa da escola. Foi na fase em que é preciso começar a escolher um caminho, no décimo ano. Estava decidida a estudar música, mas tinha alguns receios, por exemplo, como é que os meus pais iriam reagir a esta escolha. Cheguei a testar águas diferentes, acabei por optar por estudar ciências, mas o que queria mesmo era fazer música.

Sabia que em Portugal era complicado viver da música, não é algo convencional, se estivesse mais enraizado, se calhar, teria logo optado por estudar música. Em Londres, ser músico é uma profissão muito mais natural do que em Portugal.

Esta ideia só se começou a materializar depois de ter conhecido um rapaz que também tinha a ambição de ir para Londres e fazer música. Conhecemos mais pessoas com este desejo e tornou-se algo bastante real e possível de acontecer. Quando estava no 11º já não ligava nada à escola (risos).

Com que idade é que se mudou para Londres?

Com 17 anos. Já tinha acabado o décimo segundo ano, mas só faço anos em outubro, e mudei-me para Londres para continuar a estudar. Foi uma experiência um bocado agressiva, ainda estava a viver os meus anos formativos e a tentar definir quem era. No entanto, apesar de reconhecer que poderia ter corrido mal para muitas pessoas, acho que para mim, até agora, tem corrido bem. Fui confrontada com muitas experiências, pessoas e realidades que me podiam ter desviado do caminho, mas, até agora, está tudo a correr bem.

Como é que foi essa transição? Foi uma mudança complicada?

Custou bastante. No início estava bastante deslumbrada, mas cerca de seis meses depois comecei a sentir algumas dificuldades. Sentia-me tensa. Mentalmente, houve uma fase bastante complicada, mas aprendi muito com essa experiência e passei a conhecer-me muito melhor. Mesmo que tivesse a oportunidade de não ter passado por todas estas dificuldades, escolheria ter de enfrentar estes obstáculos todos outra vez.

Conhece mais pessoas que tenham enfrentado esse tipo de dificuldades?

Algumas. Acredito que todos os jovens que se mudam para um país novo sintam este tipo de dificuldades, mas também é algo que nos faz crescer um pouco mais rápido e estou grata por isso.

Sinto que esse sentimento, particularmente da solidão, é um dos temas proeminentes neste seu primeiro EP, The Way. As músicas deste trabalho são um reflexo desse período da sua vida?

Definitivamente. O EP fala sobre problemas de identidade e emoções conflituosas, tudo questões por que eu estava a passar na minha vida. Tinha acabado de chegar a uma cidade enorme e a questão que me passava pela cabeça era: quem é que eu vou ser aqui?”. Quando sais do teu país isso força-te a pensar em como é que te podes distinguir. Estou numa cidade onde todas as pessoas fazem música que já está feita. Com todas as minhas influências e experiências, o que é que eu posso fazer para mudar e trazer de diferente? 

Isso não são questões muito complexas para uma pessoa de 17 anos resolver?

É uma fase complexa é verdade, tu e o teu grupo de amigos ainda se está a formar, é uma altura muito importante. E ainda está a ser. Fiz agora 22 anos e, apesar de estar com os pés mais assentes na terra, sinto que ainda me estou a desenvolver. Todo este processo me inspira a escrever. Se estou com uma emoção que não percebo vou pegar na minha guitarra para a tentar decifrar. Posso estar a fazer música para as outras pessoas ouvirem, mas, primeiramente, é uma forma de me exprimir. Na altura em que estava a escrever o The Way, estava a tentar expressar toda esta sensação de estar perdida. 

Diria então que a criação deste disco funcionou como uma terapia?

Completamente. Acabei agora de escrever o meu próximo EP, já está pronto a ser gravado, e foi porque passei por uns meses bastante produtivos. Como estava a passar por estas dificuldades, criar música foi também uma forma de conseguir decifrar as minhas emoções. É, de certa forma, um processo de reciclar emoções, tornando as coisas negativas em algo belo. Acho que é uma das coisas mais bonitas da música. 

Que acontecimentos é que levaram à criação deste primeiro lançamento?

Concluí o curso de guitarra e durante muito tempo toquei para outras pessoas, mas queria fazer algo diferente. Sempre quis fazer a minha própria música, no entanto, sentia que as pessoas tinham uma imagem demasiado forte de que eu era apenas uma guitarrista e disse deixava-me algo envergonhada quando chegava a altura de cantar. Foi preciso chegar a pandemia para finalmente levar esta vontade para a frente. Estava sozinha no meu quarto, mas era como se estivesse sozinha no mundo. Apercebi-me que estava a fazer muitas coisas, mas que não era para mim, era para os outros.

Se estivesse sozinha no mundo para sempre, eu ia estar a tocar guitarra, a cantar e a fazer música para mim. Não me importo de trabalhar como música de sessão e trabalhar nos projetos de outros artistas, mas não era isso que estava a precisar de fazer. Este isolamento ajudou-me a perceber o que queria fazer.

Acabei o meu curso durante a pandemia, em junho de 2020, e isso deu-me o espaço para finalmente conseguir produzir e conceber as ideias deste projeto. Passei um tempo em Portugal, mas quando regressei a Londres foi só reunir outros músicos e gravar o The Way. 

Não teve receio de lançar música durante a pandemia, quando tudo estava parado e estagnado?

Tive muita sorte. Conheço muitos músicos que estavam em ascendência, mas que foram completamente anulados pela pandemia. Tinha amigos que tinham concertos marcados no festival de Glastonbury e, agora, já não têm. 

Um dos tópicos que temos abordado mais nesta conversa é o caminho que tem feito. Foi por isso que decidiu que o título do seu EP devia ser The Way?

Nunca me tinham perguntado isso, mas sim, é verdade. Este é o início do meu caminho, por isso, para mim, fez todo o sentido. Sinto que as músicas têm todas essa narrativa: existe um obstáculo, portanto, qual é o melhor caminho a seguir?

Na Freedom fala sobre livrar-me de pessoas que nos impedem de seguir o nosso caminho. 

Muitas das dificuldades de que está a falar parecem ser específicas da mudança que aconteceu na sua vida e o facto de ter ido para outro país. Acha que se tivesse permanecido em Portugal teria conseguido fazer um trabalho semelhante?
Mais do que os temas das canções, só quando me mudei para Inglaterra é que adotei o mindset que me ajudou a criar o som do disco. Aqui, as pessoas não se prendem a estilos. Não existe um disco de jazz, não há um disco de bossa nova, não há um disco de hip hop.

O que existe é uma escrita, que me inspira muito, que consegue fundir muitos géneros musicais. Bandas que eu adoro, como os Hiatus Kaiyote, conseguem fazer isto muito bem. Eles recentemente lançaram uma música com o Artur Verocai, que além do jazz mais clássico também tem influências de música brasileira. Este é o estilo musical com que mais me identifico e acredito que em Portugal, apesar de artistas que começaram a colocar isto mais em prática, ainda não é muito comum. Estar num local onde as pessoas priorizam este tipo de inovação fez-me também querer criar uma coisa nova. Acho que se tivesse continuado em Portugal, nem sequer teria ido nessa direção musicalmente. 

O fenómeno do melting pot de Londres assume então um papel fundamental.

É um contexto muito diferente do português. Londres é um autêntico encontro das mais diversas culturas em constante contacto. O meu grupo de amigos é composto por pessoas que vêm dos mais variados locais, o que me faz estar exposta a culturas novas. Isto também me fez partir numa busca mais introspetiva e procurar influências que se calhar nem sempre pensei que fossem uma parte tão integral da minha pessoa.

Mas em Portugal também existe essa fusão de culturas, se calhar não tanto no Porto, de onde a Raquel vem, mas em Lisboa isso é uma realidade mais presente.

A minha noção de Portugal sempre se baseou no Porto, mas cada vez mais, especialmente depois de ouvir relatos semelhantes a esse, percebo que são cidades mesmo muito diferentes. Gostava de ter oportunidade de um dia viver em Lisboa. Enquanto vivi no Porto nunca senti de todo esse tipo de experiência e diversidade. É uma cidade muito mais fechada.

Estava a falar sobre a vontade de se distinguir dos seus pares em Inglaterra. Houve alguma coisa que adotou de Portugal na sua música para atingir esse fim?

O sol (risos). É um bocado complicado responder a este tipo de questões. Realmente, quando era mais nova, ouvi muito música brasileira quando estava a crescer, mas isso não é algo português, não é nosso. É algo inconsciente, mas sinto que devo ter cuidado e tentar dar o máximo de volta à cultura. Já tirámos muito ao Brasil e não quero estar a fazer o mesmo. Musicalmente diria que tenho poucas influências portuguesas, uma vez que sempre ouvi muito mais música estrangeira.

Eu diria que a influência portuguesa surge muito mais na sua postura e na atitude enquanto cantautora.

Isto pode parecer um bocado mal, mas nunca explorei muito a música portuguesa, à exceção de algumas bandas de rock alternativo, mas concordo que existe uma atitude e, culturalmente, somos um povo muito mais acolhedor, “quentinho” e positivo, quando comparado com Inglaterra, e acredito que esse sentimento transparece na minha música. Existe uma calma que muitas pessoas costumam destacar nas minhas canções. Há também aquela mentalidade de emigrante, no sentido que, todas as pessoas que eu conheço que emigraram de Portugal, trabalham um bocado mais que os restantes.

Acredito que isso acontece porque sabemos que existe uma realidade mais complicada no nosso país. Apesar de, atualmente, conseguir ver algumas mudanças e ter uma visão mais positiva de Portugal, mas pelo menos na altura sentia que não ia conseguir fazer o meu caminho aí, e isso fez com que me esforçasse muito mais para atingir os meus objetivos. Também existe uma mentalidade que não nos permite relaxar, eu estou em Inglaterra, mas é para fazer a minha carreira acontecer, se não tinha continuado em Portugal.

Neste momento consegue sustentar-se com a música ou tem outro trabalho?

Já dei aulas de música, dava concertos em hotéis e locais mais descontraídos, mas, agora, não preciso. Também toco para outros artistas, é quase o meu trabalho de dia a dia. Considero-me uma sortuda.

Acha que em Portugal também conseguiria viver exclusivamente da música?

Pelo que eu ouço, não. Como já tínhamos falado, é um contexto diferente, existe um mercado muito maior que permite que haja um salário muito mais proporcional com o custo de vida. Mas tudo isto está ligado com a forma como a sociedade olha para esta profissão. Em Portugal, um músico de sessão ou até um professor de música são profissões que causam alguma estranheza e que são muito mais mal pagos.

Já ponderou em lançar músicas em português?

Já pensei e gostava muito de o fazer. Tenho várias músicas escritas em português, mas não é algo que faça propositadamente, quando estou a escrever música e no processo de interpretar as minhas emoções, costumo escrever com a primeira língua que me vier à cabeça. Sinto que um músico não se deve restringir por causa da língua. Se estou a escrever em inglês porque é que haveria de traduzir? Mas é, sem dúvida, algo que quero muito fazer. É um lado muito importante da minha pessoa e do qual tenho muito orgulho. Para além do meu próximo EP, estou a trabalhar num projeto com um amigo meu onde vou cantar algumas músicas em português.

O seu 2022 parece prometer muito trabalho, mas também muitos convites fruto do grande reconhecimento que teve no ano passado, foi um processo estranho assimilar toda esta rápida ascensão?

Eu nem tenho sentido toda essa pressão. Estou sempre a pensar no passo seguinte. Estou a tentar deixar de ser assim, para poder apreciar um bocado mais o presente. Mas vivemos num estilo de vida tão caótico e tão acelerado, que às vezes demora um bocado a perceber o que realmente aconteceu e o impacto que isso pode ter tido. Agora no Ano Novo tive oportunidade de refletir um pouco mais e perceber que estou muito grata por tudo aquilo que aconteceu. É uma aventura que tem corrido muito bem, que me deixa muito feliz e estou muito entusiasmada com 2022.

Um dos maiores acontecimentos deste novo ano é a sua presença no festival We Out Here, organizado pelo influente radialista Gilles Peterson, que também é um fã do seu trabalho. Quão entusiasmada está para este concerto?

Sinto que foi a sessão de jazz na Brownswood Basement [Brownswood é uma editora independente londrina fundada por Peterson] que criou mais tração em torno da minha música. Depois desse concerto senti que as coisas estavam a seguir um caminho “bom”. Abriu-me muitas portas e fiquei muito feliz e orgulhosa por este convite. O Gilles tem sido um grande apoio, ao passar a minha música na rádio e a elogiar o meu trabalho. Tudo isto ajuda a minha carreira e ajuda o meu trabalho a ser associado a um certo estilo musical e artistas e bandas com que me identifico. 

Inglaterra tem recebido muito bem o seu trabalho, de alguma forma sente-se injustiçada por ter sido necessário abandonar o seu país para vingar na música?

Não guardo qualquer tipo de rancor com Portugal, aliás, todas as interações, mesmo tendo sido poucas, que tenho tido com Portugal têm sido bastante positivas, apesar de sentir que existe uma barreira por ainda não ter músicas em português. Não costumo pensar nessa questão, estou apenas feliz no geral pela minha carreira estar a resultar. Mas acho que Portugal tem muito espaço e estão a surgir muitas iniciativas e música nova, mesmo dentro do jazz, que está a surgir e as pessoas estão recetivas para os receber.

Portugal pode demorar um bocado a chegar a algumas coisas, mas eu estou positiva e uma das coisas que mais anseio é chegar ao ponto de ter uma plataforma grande o suficiente para ajudar a fazer a ponte. Preocupo-me bastante com estas questões sociais e se conseguir fazer passar mensagens positivas para estes dois países isso é ainda melhor. Vejo muitas coisas com que não concordo tanto em Inglaterra como em Portugal e fico muito entusiasmada em saber que posso vir a influenciar como é que as pessoas pensam.

Será que no futuro vamos assistir a uma veia mais intervencionista na sua música?

É como diz a Nina Simone: a música vai ser sempre o reflexo dos tempos em que vivemos, e isso é o nosso dever enquanto artistas. No meu novo EP vou tratar de temas mais pessoais, questões que aconteceram a mim ou que afetam os meus amigos mais próximos, por isso é normal que queira falar deles. Problemas desde racismo, falta de igualdade, são problemas que observo e que se calhar não vivia tanto no Porto, porque não existe uma diversidade de culturas tão marcada como em Londres.

Agora, com a minha plataforma a ficar cada vez maior, é importante falar sobre estas questões. Não gosto de pensar que iria fazer um álbum de intervenção, gosto de pensar que faria algo mais natural. Vou escrever sobre aquilo que estou a sentir. Se os meus amigos mais próximos estão a passar por algo, isso vai influenciar aquilo que estou a escrever. 

Já sofreu algum tipo de discriminação por ser emigrante?

Existe algum preconceito. não por especificamente portuguesa, mas todas as pessoas que vêm de fora lidam com um certo preconceito. Pessoalmente, o que me afeta mais é a discriminação por ser uma mulher na indústria. É uma situação que está melhor, tem havido várias iniciativas nesse sentido, mas é algo que as mulheres sofrem em primeira mão.

Lembro-me, e isto é algo que acontece com todas as minhas amigas e mulheres com quem já falei, sempre que vamos tocar a uma sessão de improviso somos alvo de algum menosprezo. Como se tivéssemos o dobro da dificuldade para mostrar que somos tão boas como os homens para poder tocar ao vivo.

Quando cheguei a Londres, poucas pessoas se preocupavam com isto. Ficava muito nervosa nas primeiras vezes que toquei ao vivo, sentia que ninguém acreditava no meu talento. Estou positiva em relação aos progressos que tenho assistido, mas é uma questão em que gosto de me focar e de centrar a minha atenção.