Ucrânia: Ameaça iminente

Ninguém quer uma guerra, mas a aposta de Putin, que poderia obter cedências com ameaças, arrisca levar ao pior. 

Enquanto se aguarda o resultado de negociações entre o Kremlin e a Casa Branca em Genebra, para evitar uma guerra na Ucrânia, é normal que paire no ar uma certa sensação de dejá vù – também era em Genebra que estas duas potências se costumavam encontrar durante a Guerra Fria.

Os tempos são outros, a União Soviética foi desmantelada, Washington está mais preocupada com Pequim que com Moscovo. No entanto há coisas que se mantêm: nenhuma das partes parece estar interessada num conflito bélico, ambas estão decididas a não ceder e todos temem que um erro de cálculo vire tragédia.

«O que está em causa é o estatuto da Rússia enquanto grande potência e a esfera de influência que pode vir a ter», sumariza Diana Soller, investigadora do Instituto Português de Relações Internacionais (IPRI-NOVA), ao Nascer do SOL.

Na prática, as negociações em Genebra não parecem estar a correr nada bem, tendo o Kremlin endurecido a sua posição, na sexta-feira, somando à sua reivindicação central (que a NATO se comprometa a nunca aceitar a Ucrânia como Estado membro) a exigência de que retire as suas forças da Roménia e Bulgária. Tudo coisas que Washington recusa sequer equacionar.

Contudo, Joe Biden tem pouca margem de manobra. O Presidente está fragilizado pela desastrosa retirada do Afeganistão, é muito impopular – tem uma taxa de aprovação de apenas 41,9%, segundo a FiveThirtyEight – e mais de cinco em cada seis americanos estão contra o envio de tropas para a Ucrânia, mostra uma sondagem recente do Trafalgar Group. Já Vladimir Putin tem noção disso, daí que, em vez de ceder, tenha optado para o pressionar, considera Soller.

«O que Putin está a fazer é forçar a negociação nos seus próprios termos. Mostrar que a violência, que o uso da força, não está completamente posto de lado pelo Kremlin», considera a investigadora do IPRI-NOVA. Mas essa aposta pode correr muito mal, alertou o próprio Biden a semana passada, notando que, depois de tantas ameaças, o regime russo «tem de fazer alguma coisa» para não perder a face. 

«Não me admirava que os Estados Unidos sacrificassem a Ucrânia para terem uma paz duradoura com a Rússia», continua Diana Soller. «Os  Estados Unidos estão verdadeiramente empenhados em conter a China. Não me parece que tenham capacidade de conter a Rússia e a China ao mesmo tempo».

Já a possibilidade de Washington apostar no seus aliados europeus como bloqueio à Rússia não parece ser realista. E não só pela  sua dependência de gás natural vindo da Rússia, que deverá tornar-se cada vez mais aguda à medida que abandonam outros combustíveis fósseis.

Por mais que a Alemanha se mostre combativa – muito por influência dos verdes, particularmente avessos a Moscovo, cuja líder, Annalena Baerbock, ministra dos Negócios Estrangeiros, prometeu que uma invasão teria «um preço elevado para a Rússia» – ou o Reino Unido tenha começado a fornecer armamento antitanque à Ucrânia, «os aliados europeus não têm verdadeira capacidade de conter a Rússia», avalia a investigadora do IPRI-NOVA. «A NATO é os Estados Unidos, não funciona sem eles», reforça.

Talvez por isso, o Presidente francês, Emmanuel Macron, tenha lançado apelos a que a União Europeia encete as suas próprias negociações com a Rússia, esta semana. Tendo como objetivo de evitar «a mais trágica coisa de todas, a guerra».
«A própria Rússia, que está com grandes problemas económicos neste momento devido à inflação, como parte significativa do mundo, não está interessada numa guerra», considera Diana Soller. «Mas também penso que, se a Rússia precisar de fazer uma demonstração de força para convencer o Ocidente a ceder às suas reivindicações, isso poderá acontecer».

Poder no ar, guerrilha no chão

De maneira a ganhar força nas negociações, a Rússia fez questão de exibir o seu maior trunfo – tem possivelmente as segundas forças armadas mais poderosas do planeta, sustentadas por uma economia pouco maior que a de Espanha – na fronteira com a Ucrânia. Estão lá estacionados mais de cem mil militares prontos a avançar, apoiados por tanques, artilharia e aviação. Esse número «poderia ser duplicado relativamente rápido», alertou esta semana o secretário de Estado americano, Antony Blinken. Contra esta força, os americanos e os seus aliados nem sequer gozariam da sua habitual e indiscutível supremacia aérea.

A Rússia está a deslocar para a fronteira as baterias Iskander, capazes de disparar mísseis de médio alcance com precisão a partir de camiões, avançou a Foreign Policy. Numa invasão, dominariam os céus da Ucrânia, bloqueando apoio internacional, conseguindo evadir as fraca defesa aérea ucraniana e abater alvos no solo. Isto enquanto eram lançados ciberataques, potencialmente paralisantes para o Estado ucraniano, como aconteceu a 14 de janeiro, em jeito de ameaça. 

Não espanta que Joe Biden recuse comprometer-se a enviar tropas americanas para a Ucrânia no caso de uma invasão, uma resposta que poria os EUA em colisão direta com outra potência nuclear. No entanto, com a Ucrânia ocupada, seria aí que começaria o pesadelo de Vladmir Putin.

Mesmo que o Kremlin não tomasse Kiev, optando por avançar no sul e este, juntando forças com separatistas russos de Donbass e unindo a Rússia à península Crimeia, que anexaram em 2014, poderia ser desastroso, alertam analistas. Ainda pior que as sucessivas guerras civis na Chechénia – Putin, que chegou ao poder prometendo aniquilar os separatistas chechenos, em 1998, certamente não esqueceu este conflito, que se estima ter custado uns sete mil milhões de euros por ano, culminando na total destruição da capital chechena, Grósnia – ou a invasão da Geórgia, em 2008.

«Tentem invadir um país como a Ucrânia, com uma população que é claramente contra vocês que está armada até aos dentes, onde a maioria dos homens têm pelo menos treino militar rudimentar», descreveu Siemon Wezeman, investigador Stockholm International Peace Research Institute, à agência Reuters. «Vais entrar numa área que é a Chechénia multiplicada por dez ou a Geórgia multiplicada por trinta».

Daí que a Casa Branca comece a ameaçar apoiar uma eventual insurgência, tendo colocado forças especiais na Ucrânia a treinar soldados para se misturarem entre as populações e atuarem atrás das linhas inimigas, numa guerra de guerrilha. Estariam até dispostos a treinar essas forças ucranianas a partir de países próximos integrados na NATO, como a Polónia, Roménia ou a Eslováquia, avançou o New York Times.

«Em discussão com aliados, dirigentes seniores de Biden deixaram claro que tanto a CIA (clandestinamente) como o Pentágono (abertamente) procurariam ajudar qualquer insurgência ucraniana», dizia o jornal americano. 

Corram como correram as negociações de Genebra, trata-se de um cenário que tão cedo não sairá de cima da mesa. É que a Ucrânia é crucial para a mitologia do regime de Putin, que quer afirmar-se como o protetor dos eslavos pelo mundo fora, da Bielorrússia aos Balcãs, tornando inaceitável qualquer presença da NATO.

«Os nossos laços espirituais, humanos e civilizacionais formaram-se ao longo de séculos e têm origem na mesma fonte», escreveu Putin num artigo de opinião, em julho, referindo-se ao império russo, que teve o seu berço em Kiev, não Moscovo. Para os nacionalistas russos, a presença da NATO na Ucrânia seria quase vista como uma ocupação de Guimarães, perante os olhos dos portugueses. «Somos um povo», continuou o Presidente russo. 

«Não é a primeira vez que há cem mil tropas russas na fronteira com a Ucrânia», lembra Diana Soller. «Nem vai ser a última, do meu ponto de vista».