Saudades daquilo que não vivemos

Comparar a qualidade de Freitas do Amaral ou Pulido Valente à de Rodrigues dos Santos ou André Ventura leva-nos a um suspiro seguido do sentimento de culpa só pela tentativa.

 

Penso ter sido através do Woody Allen que me cruzei com o conceito Golden Age Syndrome: basicamente achar que nascemos na época errada e que a anterior ‘é que era’. Só que isto em espiral: ou seja, a passo que nós hoje achamos que os anos 70 ‘é que eram’, as gerações desses anos 70 achavam que os anos 20 ‘é que eram’, e as dos anos 20 achavam que o fim do século passado ‘é que era’ – assim sucessivamente. Estando o dito síndrome apresentado, devemos segui-lo de forma dogmática? Ou será correto considerar que o passado pode, de facto, ser melhor? 

Peguemos na verdade pelos cornos: é ou não factual que, em Portugal, a classe política da atualidade é sobejamente inferior à dos anos 70/80? É ou não factual que, em Portugal, os intelectuais de então eram superiores aos de agora? É ou não é verdade que os políticos nos anos 70 tinham muito mais dignidade do que os atuais? 

Pus-me recentemente a ver o clássico debate entre Soares e Cunhal em 1975: o charme, a dignidade, a massa intelectual, a profundidade, a coragem – tudo ali, num preto e branco nostálgico que faz sentir saudades do que não vivemos. Ali há tudo o que se espera de uma democracia: respeito, troca de ideias, elevação, emoções. Comparar um debate destes com um dos que agora findam é, no mínimo, penoso. Onde antes víamos intelecto, hoje vemos boçalidade. Onde antes víamos ideologia, hoje vemos soundbites. Onde antes víamos fineza, hoje ouvimos gritos.

Não se entende – e não se entende sobretudo à direita – a razão pela qual houve um abandono da cultura na política, da profundidade no discurso e da dignidade no debate. É preciso gritar para passar a mensagem? É preciso interromper boçalmente o adversário para ser-se ouvido? É essa a virtuosidade que se espera de um primeiro-ministro? Não. 

Foquemo-nos na Direita conservadora: comparar a qualidade de Freitas do Amaral ou Pulido Valente à de Francisco Rodrigues dos Santos ou André Ventura leva-nos a um suspiro seguido do sentimento de culpa só pela tentativa. Não se trata de Golden Age Syndrome: é ou não factual que aqueles senhores eram superiores aos de hoje? Tinham ou não tinham lido melhor? Eram ou não verdadeiros intelectuais, fecundos na criação de pensamento? Onde está isso agora? Quem cria e põe em prática ideologia na Direita conservadora? Ninguém: está seca, árida, sem alma – alimenta-se da pouca carne que ainda vai sobrando dos seus ossos podres. Não se move por causa de algo, move-se sempre contra alguém. 

Se a esquerda é socialismo e tem Sousa Pinto; se a esquerda é federalismo e tem Tavares; se a esquerda é comunismo e tem João Oliveira – quem é e o que tem esta Direita? Apenas Marcelo – democrata-cristão que caminha para o seu último mandato a Presidente da República. Assim sendo, numa questão de anos, que nomes terá? Parece que há a possibilidade de Ribeiro e Castro voltar ao Parlamento. Acontecendo, os quatro anos do seu mandato seriam uma ampulheta cujo fim marcaria a abertura das portas para o nada – ou seja, um adiamento da desgraça. Não acontecendo, o Parlamento ficará, pela primeira vez, despido de conservadorismo inteligente e profundo – o mesmo que, há quase 50 anos, foi a pedra basilar da fundação do Portugal moderno.

Não é Golden Age Syndrome. É olhar à volta: e ter pena. Pena de não se ser o que se sabe que já se foi. E pena por saber que o que já se foi muito dificilmente poderá voltar a ser.