A uma semana da data prevista para a retoma da vacinação, as posições voltaram a divergir: no dia em que a Direção-Geral da Saúde divulgou um parecer do Programa Nacional para as Doenças Cérebro-Cardiovasculares a reafirmar os benefícios e segurança das vacinas nas crianças dos 5 aos 11 anos, foi divulgada uma carta assinada por 27 médicos* a defender que os riscos e benefícios sejam reavaliados em função da atual vaga de covid-19 em que as crianças têm sido dos grupos mais expostos à infeção, defendendo a suspensão cautelar da vacina.
No meio do desencontro de opiniões entre peritos, há um dado factual: a afirmação de que a covid-19 representa um risco 60 vezes maior de miocardite nas crianças do que a vacina da covid-19 não é fundamentada na bibliografia que acompanha o parecer.
Das referências apresentadas pelos autores, Filipe Macedo e Fátima Pinto, responsáveis pelo programa de Doenças Cardiovasculares, não é possível estimar essa diferença de prevalência. Jorge Amil Dias, presidente do Colégio de Pediatria da Ordem dos Médicos e um dos signatários da carta dos pediatras enviada à DGS e Infarmed, fala de uma «grosseira falta de rigor» na fundamentação do documento e, ao Nascer do SOL, diz que independentemente da divergência de opiniões, não pode «valer tudo» tratando-se de um parecer técnico.
Fátima Pinto, coautora do documento e cardiologista do Hospital de Santa Marta, admite ao Nascer do SOL que não foram colocadas no documento todas as referências a consultadas mas recusa a crítica de qualquer falta de rigor e reafirma as conclusões, sublinhando que continuam a chegar casos graves de covid-19 em crianças aos hospitais. A explicação, que falta no documento, não colhe no entanto junto de Jorge Amil Dias, que confrontado pelo Nascer do SOL mantém a posição sobre a «falta de rigor» na análise.
O que está em causa
Vamos por partes para expor o que divide estes especialistas, médicos reconhecidos nas suas áreas e que já antes tinham demonstrado ter visões diferentes sobre a vacinação das crianças.
No parecer divulgado pela Direção-Geral da Saúde, especificamente sobre as implicações cardíacas da covid-19 e da vacina no grupo etário dos 5 aos 11 anos, é explicado o que é uma miocardite, uma afeção do músculo cardíaco, e no caso concreto o que está em causa. «A miocardite associada à COVID-19 pode ocorrer em três circunstâncias diferentes: devido à infeção viral, em cerca de 60 casos por 100.000 indivíduos infetados; na doença mais grave, síndrome inflamatória multissistémica por COVID-19 (MISC-C ou PIMS) atingindo cerca de 17,3% dos casos; e após vacinação, com uma incidência de 0,5 a 1 caso por 100.000 indivíduos», escrevem os autores, salientando que as causas de miocardite no contexto da covid-19 são ainda desconhecidas.
Fazem depois a afirmação de que a miocardite por infeção com SARS-CoV-2 é cerca de 60 vezes mais frequente do que após vacinação, podendo ter «sintomas mais graves, evolução mais prolongada, bem como complicações e sequelas a longo prazo». Porém, nas referências bibliográficas apresentadas pelos autores, não é possível extrair esta diferença de prevalência, nomeadamente o risco 60 vezes superior, sendo algumas das referências científicas apresentadas anteriores à vacinação das crianças e das comparativas não se extrai esse dado.
Um dos estudos diz respeito a uma análise numa clínica em Atlanta que analisa retrospetivamente casos de miocardite em pessoas com menos de 21 anos entre 2015 e 2019 com os casos associados à síndrome inflamatória multissistémica por COVID-19 (MISC-C) e a casos associados à vacina, respetivamente 43, 149 e nove no caso da vacina, concluindo que nos casos associados à MISC-C a apresentação clínica era mais significativa mas a recuperação melhor.
Já os casos ‘clássicos’ e os associados à vacina eram mais semelhantes, também com recuperação. Recomendam os autores, da Universidade de Emory, em Atlanta, um seguimento das consequências clínicas de ambos os casos, mas daqui não se extrai um risco 60 vezes superior. Um segundo estudo reporta a um trabalho centrado em jovens dos 12 aos 29 anos nos EUA publicado em junho de 2021, anterior à iniciação da vacinação das crianças dos 5 aos 11. A terceira referência remete para uma explicação de que o sistema de farmacovigilância dos Estados Unidos está a investigar suspeitas de miocardites após a vacinação.
Note-se aqui que os dados americanos, os mais extensos até à data dado que já foram administradas 8,7 milhões de doses de vacinas a crianças dos 5 aos 11, receberam neste grupo etário 100 notificações de reações adversas graves, uma em cada 87 mil vacinas, entre elas 12 reportes de miocardite, a maioria após a segunda toma, oito já com alta à altura do balanço (19 de dezembro) e quatro a recuperar. Garantindo a segurança, o estudo do CDC não quantifica o risco em 60 vezes superior.
A explicação
Questionada pelo Nascer do SOL na quarta-feira sobre as inconsistências na fundamentação no parecer, a DGS remeteu ontem para a co-autora Fátima Pinto, cardiologista, adjunta do Programa Nacional para as Doenças Cérebro-Cardiovasculares.
Ao Nascer do SOL, a especialista admite que a bibliografia apresentada no parecer não reflete toda a literatura consultada pelos autores, mas reafirma as conclusões e explica os pressupostos da análise. «As referências bibliográficas que nós apresentamos são um terço daquilo que existe disponível neste momento em todo o mundo, era impensável estarmos a incluir 60 artigos bibliográficos», justifica a médica, explicando que existe estimativas muito díspares sobre a incidência de miocardite em crianças com covid-19 e que os dados reportados em cada país dependerão sempre da cultura de reporte em cada um, sendo a nacional historicamente baixa.
Assim, Fátima Pinto explica que as estimativas apresentadas para o risco de miocardite associado à covid-19 tiveram por base estudos que investigaram a incidência de miocardite em atletas, casos em que essa investigação foi feita com recurso a ressonância magnética, permitindo quantificar alterações cardíacas no pós-infeção. «Tiveram covid-19 grave e como eram federados (para avaliar condição para desporto), decidiu-se fazer exames imagiológicos, além do eletrocardiograma, a ressonância magnética, que é o exame gold standard para um diagnóstico de miocardite, porque o único exame que dá um diagnóstico certo é a biopsia miocárdica e esses exames não são feitos ao de leve. Com a ressonância magnética, temos achados paradigmáticos de miocardite. E o que estes colegas encontraram foi que a incidência nestes atletas que não tinham sido hospitalizados podia ir até 1,4%», explica Fátima Pinto, remetendo para dois artigos publicados na revista médica norte-americana JAMA (JAMA Cardiol. 2021 Jul 1;6(7):745-752 e JAMA Cardiol. 2021;6(7):745-752).
A médica admite que «falham no documento algumas referências bibliográficas», recusando no entanto qualquer «falta grosseira» e salientando que o que se procurou foi sistematizar informação e, comparado com os casos notificados após a vacina, mantém a quantificação de um risco mais de 60 vezes superior.
«Não temos um número correto, é acima de 60 vezes, pode ser ainda mais. Só saberíamos isto se fizéssemos um estudo populacional muito grande em que se pegasse em 10 mil crianças que tiveram covid-19 e se fosse fazer uma ressonância magnética a todas. Aí poderíamos ter por exemplo a surpresa de constatar que a miocardite, ainda que incipiente, ocorre em 2% dos casos. Não sabemos isto, mas o que dizemos é que há estudos que apontam para isto e que se baseiam em doentes com evidência de miocardite».
A médica diz que neste momento não há dados de casos de miocardite em crianças infetadas compilados a nível nacional, mas dá como exemplo os doentes seguidos no Hospital Dona Estefânia, de referência para casos pediátricos de covid-19, e que pertence ao centro hospitalar onde se insere o Santa Maria. «Até hoje já ultrapassamos 500 doentes com covid-19 em idade pediátrica, que foram todos avaliados por cardiologistas. Encontrámos alterações laboratoriais que poderiam sugerir alterações clínicas de alguma lesão do miocárdio em 15%», diz, explicando que estes dados não permitem concluir com certeza que eram casos de miocardite, tratando-se no entanto de crianças e jovens que tinham enzimas como as troponinas elevadas, que indiciam algum tipo de lesão no miocárdio.
Por outro lado, afirma, 12 a 14% apresentavam lesões nos eletrocardiogramas realizados. «É preciso ter presente que as crianças internadas no Hospital Dona Estefânia são os casos mais graves, mas são números elevados», afirma, sublinhando que atualmente há crianças internadas com quadros graves de covid-19 e outros por outros motivos mas em que estar infetado com o SARS-CoV-2 continua a ser encarado como fator de risco acrescido, discordando da desvalorização da infeção mesmo quando o internamento é por outros motivos. A médica relata dois casos extremos em que a degradação de doença cardíaca prévia após a infeção motivou transplantação cardíaca, salientando, que comparando com este risco, a vacinação mantém benefícios superiores aos riscos.
Confrontado com esta explicação, Jorge Amil Dias mantém a crítica ao parecer e a posição da carta enviada às autoridades e tornada pública, considerando que não se podem comparar estudos diferentes e investigações proativas de miocardites com notificações espontâneas de reações adversas associadas à vacina. «Quando estamos a falar de miocardites associadas à vacina, estamos a falar de crianças que tiveram uma dor no peito, que fizeram um exame, estava alterado e conclui-se que havia uma doença. Os casos reportados na farmacovigilância são casos que levaram pessoas ao médico», diz, considerando que não se pode comparar pesquisas com ressonância magnéticas com registos clínicos.
Para o médico, o documento não devia ter sido publicado pela DGS antes de ser escrutinado, considerando que para haver um risco 60 vezes superior, havendo agora 15 casos de miocardites reportados em Portugal (13 adolescentes e dois em crianças) no âmbito da farmacovigilância de vacinas, deveriam ter sido reportados 900 casos de miocardite entre crianças com covid-19.
*Correção: A carta noticiada esta semana não é assinada por 27 pediatras, como se escreve erradamente no artigo hoje publicado, mas por 27 médicos, entre os quais 14 pediatras.