E se houvesse só um comentador?

Nas eleições legislativas de 1991, todas as entrevistas aos líderes foram analisadas na TV por um único comentador.

Calculo que o leitor tenha dificuldade em acreditar no que vou contar. Em 1991, nas vésperas das eleições legislativas, a RTP entrevistou como é normal os líderes dos principais partidos concorrentes. E para comentar todas as entrevistas convidou apenas uma pessoa. Ora, como ainda não havia canais privados, as performances dos líderes na televisão portuguesa, até à ida às urnas, foram analisadas por um único comentador! 

Posso afirmá-lo com total segurança, pois esse comentador único… fui eu.

Via as entrevistas em casa, tranquilamente, depois metia-me no carro e ia até aos estúdios da RTP, então na Alameda das Linhas de Torres, fazer o comentário.

Isto que, para a maioria dos comentadores, seria motivo de grande orgulho, não me afetou positiva nem negativamente. Nunca pensei fazer uma carreira televisiva, pelo que as prestações no pequeno ecrã nunca me preocuparam grandemente. O meu meio sempre foi a escrita. Aí é que verdadeiramente me empenhava e me sentia feliz e realizado. E assim continua a ser ainda hoje. 

Sou pouco rápido a reagir, não tenho a resposta pronta, preciso de tempo para pensar no que vou dizer, e sinto-me pouco confortável com a exposição pública. Ora, nada disto é muito compatível com a televisão.

Logo a seguir ao 25 de Abril, fiz alguns documentários para a RTP e um programa que teve grande sucesso chamado O 25 de Abril, Três Anos Depois. 

Na sequência da sua transmissão, o Conselho de Administração da empresa convidou-me para fazer uma série histórica, a que dei o nome de Os Anos do Século. Deixei a série a meio, por incompatibilidades com o realizador, mas ainda foram transmitidos três episódios. E os outros acabariam por ser concluídos pelo historiador César Oliveira.

Entre 1977 e 1980 dei aulas no Centro de Formação da RTP, em Lisboa, e em 1983 fiz uma série de grandes entrevistas políticas, de parceria com Margarida Marante.

E sucederam-se os comentários circunstanciais, em épocas de eleições ou períodos politicamente quentes. Os meus companheiros mais regulares nessa função foram, na época, José Miguel Júdice e Eduardo Prado Coelho. O primeiro representava a direita, eu o centro e o último a esquerda. Era assim que a RTP nos via.

Mas à medida que o tempo passava, a minha aversão à TV acentuava-se. 

Comecei a recusar semanalmente convites. Mesmo da SIC, a cujo grupo pertencia, e aos quais teria alguma ‘obrigação’ de corresponder. 

Tive propostas honrosas. A certa altura, nos anos 90, José Rodrigues dos Santos e Judite de Sousa, diretores de informação da RTP, convidaram-me para ser o principal comentador político da estação, que ‘competiria’ com Marcelo Rebelo de Sousa (então na TVI). Mas rejeitei liminarmente. Não me sentia de todo com vontade nem capacidade para desempenhar esse papel.

Sucedi a Marcelo como diretor do Expresso – mas uma coisa é um jornal e outra a televisão. 

Depois do falecimento do meu tio José Hermano Saraiva, o produtor dos seus programas, José António Crespo, achou que seria eu a pessoa certa para tomar o lugar dele e fazer programas históricos na mesma linha. Mas isso, então, seria um motivo de risota! O sobrinho a fazer de tio! Eu, com as minhas reservas, sem gosto de me expor, substituir uma das maiores figuras de sempre da televisão portuguesa, um homem com um conhecimento profundo da história de Portugal e uma capacidade única de seduzir o telespetador!

Seria uma caricatura.

É verdade que tive algumas prestações televisivas felizes, designadamente quatro presenças na Grande Entrevista, duas com Judite de Sousa e duas com Victor Gonçalves. Gostei especialmente da última, onde falei de um livro sobre Salazar, pouco antes publicado, que desmistificava a queda da cadeira. Mas uma entrevista de uma hora, com perguntas e respostas, com um tema definido, não tem qualquer paralelo com uma presença assídua no ecrã. Essa, nunca a desejei – e nunca a desempenharia a contento. Essa é a verdade.

A televisão não é o meu meio. Nunca foi, nunca será.

Voltando aos comentadores televisivos, ao vermos os rostos que enxameiam hoje os vários canais, alguns que nunca tínhamos visto antes, comentando entrevistas, comentando debates, comentando comentários, parece impossível que, numas eleições não tão distantes como isso, tenha havido apenas um comentador.

Talvez fosse pouco.

Mas hoje são demais. Há muitos canais, todos têm os seus comentadores ‘exclusivos’, e, sobre certos acontecimentos, alguns canais fazem ‘painéis’ sucessivos. São noites inteiras a debitar comentários. Verdadeiras overdoses. E a sensação que fica no final é de uma enorme confusão. Não se retém nada do que foi dito. 

A função de um comentador é ajudar o telespetador, de uma forma tanto quanto possível isenta, a organizar as ideias. Ajudá-lo, de modo intelectualmente sério, a ver as coisas mais claras. Ora, com 20 ou 30 comentadores por noite, não fica ideia nenhuma. Fica uma amálgama de opiniões desencontradas, onde mesmo as mais bem estruturadas se perdem no meio da algazarra.

Se eu nunca gostei muito de TV, hoje seria para mim impensável participar naqueles cafarnauns. 

Mas eu percebo. A função das televisões não é esclarecer – é entreter. E para entreter os telespetadores, a forma mais simples e mais barata nestes tempos eleitorais ainda será encher os estúdios de comentadores e deixá-los falar.

Uma nota final. Se agora houvesse um comentador único dos debates, imagino os protestos que por aí iriam, nas redes sociais e por parte dos próprios representantes partidários. Ora, nessas eleições em que fui o único a comentar, não me lembro de haver reclamações. Apenas recebi um cartão particular de Freitas do Amaral, a cortar relações por causa de uma afirmação que eu tinha feito e ele considerava injusta. Mas mais tarde retomámos a relação. E ele acabou por me dar razão ao sair do CDS e integrar um Governo socialista.