Harry Potter e os prisioneiros do ridículo

Podemos passar a percecionar o céu como rosa e não azul; uma tangerina pode passar a ser uma maçã e uma pessoa que menstrua não tem de ser necessariamente uma mulher.

Por José Maria Matias

Desde o ano passado, a escritora da saga de Harry Potter tem sido acusada de transfobia, após ter respondido no Twitter a um artigo com o título ‘Creating a more equal post-COVID-19 world for people who menstruate’. O pecado de J.K Rowling foi ter afirmado que as pessoas que menstruam são as mulheres. Rapidamente tivemos várias iniciativas de boicote aos livros da saga Harry Potter. No lançamento do trailer do novo filme de Fantastic Beasts, o nome de Rowling foi praticamente apagado pelos produtores, com medo dos danos que a menção poderia causar. Vários atores do filme, incluindo Daniel Radcliffe e Emma Watson, criticaram Rowling pelas suas declarações no Twitter. Ao mesmo tempo, os anúncios que promovem o documentário produzido pelo HBO – que marca a celebração dos 20 anos da saga – têm excluído a autora. Rowling sofre o cancelamento cultural, somando um conjunto de episódios de perseguição ideológica um pouco por todo o lado, tudo porque se limitou a fazer uma constatação da realidade.  Contudo, tal afronta não podia passar em branco de quem decidiu construir um mundo, tendo como base um insulto aos nossos olhos.  Atualmente, o único dogma existente é o de podermos ser tudo e o seu contrário, onde as possibilidades são infinitas. Podemos passar a percecionar o céu como rosa e não azul; uma tangerina pode passar a ser uma maçã e uma pessoa que menstrua não tem de ser necessariamente uma mulher.

Recentemente, soube-se da intenção de reconstruir a saga numa versão com atores transgénero, não-binários e multirraciais. Os autores da ideia estarão até dispostos a lutar judicialmente contra Rowling que detém os direitos de autor dos filmes. Se não conseguem ‘moralizar’ a autora, irão forçar a ‘moralização’ da sua obra. Contudo não deixa de ser um exercício sugestivo, isto porque, não percebemos se os autores da ideia querem sujeitar a saga de fantasia à sua conceção ideológica da realidade. Ou então, se querem colocar no mesmo exato plano as suas ideologias e a saga de fantasia – o que não deixaria de ter a sua graça. Podemos ir ainda mais longe na compreensão das suas motivações: o que move os autores é um desejo de revanchismo pessoal face às posições de Rowling, ou então, reconhecem que sendo a obra de Harry Potter tão significativa para o mundo e na formação das novas gerações, poderão ter aí uma oportunidade para disseminar as suas ideologias através dela. Ou seja, assume-se então a hipótese de que de facto, a cultura é um instrumento de propagação ideológica.

Quanto ao boicote às obras de Rowling pelas suas posições, ainda que esta tenha apenas afirmado a realidade, merece considerações. No fundo, seria o mesmo que proibir concertos de Mozart ou reescrever obras de Shakespeare, por ambos terem vivido na época da escravatura. Temos quem refaça histórias ficcionais e abre-se a fenda para rever a própria História da Humanidade.  Foi o mesmo que levou à destruição de estátuas de personalidades históricas por todo mundo, não há muito tempo. Um acertar de contas com o passado, na esperança de amordaçar-nos no presente, pela perversidade de controlar-nos no futuro.

No livro de Harry Potter e Talismãs da Morte, existe um diálogo extraordinário entre Dumbledore e Harry, em que este acaba a definir as palavras como a nossa maior fonte inesgotável de magia, tendo um valor incalculável. Se não percebemos que está em causa uma demonização do espírito crítico, através de restrições discursivas cada vez mais apertadas, vamos dar por nós, presos a um ridículo dos ridículos que nos querem ridicularizar.