Por causa de Bruce Chatwin e do seu Canto Nómada deixei-me fascinar pela cultura aborígene. Só gente de um desprendido bom senso de um profundo romantismo é capaz de defender com unhas e dentes que os caminhos percorridos pelos habitantes originais da Austrália pré-colonial deixavam no rasto de cada um que passava por eles um fio da memória dos seus ancestrais, as songlines, uma espécie de mapa musicado onde fixavam as novas paisagens e os novos trilhos pelos quais se aventuravam.
A ideia, por si só, é maravilhosa, bem digna de outra daquele que se tornou no maior viajante e escritor de viagens do nosso tempo, A Anatomia da Errância, que explica como depois de deixar de ser um animal nómada, seguindo os passos das manadas que lhe serviam de alimento, obedecendo ao calendário das seivas, o homem caiu na sedentarização, a principal causa da depressão de todos os distúrbios emocionais que surgiram durante a modernidade. Restlessness, chamou-lhe Chatwin. Palavra definitiva.
Há quem diga que os aborígenes australianos são descendentes dos primeiros humanos a saírem de África para Oriente e que tal migração se deu à cerca de 70 mil anos. Só isso lhes daria uma sensação de posse do território, algo que o homem branco e a sua ideia de supremacia rácica tratou de arrasar desde que os ingleses tomaram posse da ilha que é tão grande que se recusa a ser tratada como ilha e prefere a designação de continente. Quando tomaram conta da Austrália, parece que foram encontrar várias comunidades aborígenes com mais de 300 mil autóctones, divididas em cerca de 500 grupos étnicos e falando 200 línguas diferentes. Nada que encaixasse com o feitio concentracionista de um britânico.
O Império deu caça ao aborígenes, e quando digo caça, digo caça mesmo, com muitos deles a serem abatidos como dingos ou cangurus. Depois, a Austrália já independente, avançou com uma política de assimilação, roubando mais de cem mil crianças aborígenes aos país e internando-as em centros educativos para que absorvessem a cultura ocidental, condição indispensável para que pudessem fazer parte da nova sociedade. Nos anos 60, restavam apenas 40 mil aborígenes na orgulhosa Austrália Branca. E não tinham qualquer tipo de direitos.
Voltemos atrás no tempo. No dia 24 de maio de 1874, Wollon Charlie e a sua mulher Guli, um casal de agricultores aborígenes de Jimbour Station, não longe de Daly, na província de Queensland, trouxeram ao mundo um rapaz que levou o nome de Jerry Jerome. Viviam-se os dias do Control of Aboriginal Protection Act, o que significava que todos os aborígenes, fossem de que tribo fossem (Wolloon e Guli eram yiman), estavam sob o poder de um Chefe Protetor designado pelo governo.
Jerry cresceu bem, para o alto e para o lado, tornou-se num calmeirão assustador e num magnífico cavaleiro e praticante de boxe. Sobre ele ergueram-se toda a espécie de lendas. Tinha um movimento de pernas meio dançante que alegrava os espetadores e ele garantia que bateria qualquer cavalo da região numa corrida de 200 metros. Chamaram-lhe o Ciclone de Warra. Mas tanta exposição teria, inevitavelmente, de esbarrar com a irritação de um branco mais poderoso.
Esteve preso. Finalmente, um grupo de habitantes de Dalby conseguiu fazer aprovar um documento no qual era considerado de half caste, ou seja, mestiço, retirando-lhe a terrível designação de aborígene. A partir daí pôde subir aos ringues e bater descansadamente nos seus adversários.
As vitórias de Jerry, sobretudo sobre o francês Ercole de Balzac e sobre o campeão inglês Jim Sullivan, valeram-lhe bom dinheiro. Suficiente para viver à vontade e até comprar um automóvel. Foi-lhe atribuído o título de campeão australiano de pesos-médios e dava tanto nas vistas que irritou de sobremaneira um canalha chamado J. W. Bleakley que reportou às autoridades financeiras que Jerome tinha aberto uma conta bancária de mais de mil libras esterlinas.
Além disso, acrescentou uma nota que poderia ter sido humorística se não fosse velhaca: «This moneyed gentleman ‘took a ‘ean advantage’ to obstruct discipline and defy authority». Basicamente, ofendia-se pelo facto de Jerry gastar o dinheiro com ele próprio e a sua família, aproveitando-se dos lucros do seu trabalho. Ainda por cima, o boxeur tivera o descaramento de lançar um apelo a todos os aborígenes para se recusarem a trabalhar gratuitamente, algo que se tornara bastante vulgar.
O Ministério das Finanças levou a sério o relatório de Bleakley. Ordenou que se criasse um gabinete de aconselhamento com poder para controlar o dinheiro de Jerry e indicar o tipo de investimentos que devia fazer. Quando morreu, em setembro de 1943, na missão de Cherbourg, Jerome era um velho de cabelo branco e sem qualquer dente na boca. Tal como as gengivas, os seus bolsos estavam vazios.