O palavrão

O palavrão é um convite ao facilitismo; falar sem palavrões obriga a pensar melhor na construção da frase que se vai dizer, desenvolvendo o vocabulário e o próprio raciocínio.

Hoje, ao passarmos junto de um grupo de jovens – rapazes ou raparigas – é raro não ouvirmos um palavrão. E às vezes dois ou três seguidos, de rajada.

Independentemente da grosseria que isso representa, falar com palavrões empobrece enormemente o vocabulário. «É bom como a m…», «é grande como o c…», «vai-te f…», etc. Os palavrões dão para adjetivar tudo. Não é preciso procurarmos em cada caso o adjetivo apropriado, pois os palavrões substituem-no, com a vantagem de dois ou três serem aplicáveis em quase todas situações e até com sentidos diferentes. A palavra «m…», por exemplo, pode ser usada com vários significados: «O filme é uma m…», «o Jorge é esperto como a m…», «Tira-me daqui essa m…», etc.

Nestas condições, o palavrão é um convite ao facilitismo; e recusá-lo é exatamente o contrário: obriga a pensar melhor na construção da frase que se vai dizer, desenvolvendo o vocabulário e o próprio raciocínio.

Já contei em tempos aos leitores como, em muito jovem, deixei de usar palavrões. O meu irmão mais velho, António, que era bastante ‘moralista’ – ainda é –, a certa altura propôs-me um concurso para nos desabituarmos de dizer palavrões. Tínhamos um irmão muito mais novo, o Pedro, fazia dez anos de diferença de mim, e dizermos palavrões seria um péssimo exemplo para ele.

O concurso era o seguinte: quem dissesse um palavrão, e o outro ouvisse, tinha de lhe pagar cinco tostões. Cinquenta centavos. Não era muito, mas ainda era dinheiro. Para o leitor ter uma ideia, era o preço de uma viagem de elétrico relativamente curta – por exemplo, de Algés a Belém. Era também quanto custava um ‘bolo do padeiro’ (também chamado arrufada). Eu vinha a pé do liceu para poupar o dinheiro que me permitia comprar numa padaria a meio do caminho o tal bolo do padeiro.

Pois bem. O concurso começou, cada um de nós foi tendo de pagar cinco tostões ao outro, uma vez eu, outra vez ele, as coisas estavam equilibradas, mas a partir de certa altura eu comecei a conseguir dobrar melhor a língua e as dívidas do meu irmão foram-se acumulando até atingirem um valor considerável… e incomportável para o seu bolso. Aí o concurso teve de parar. Mas entretanto eu tinha-me desabituado por completo de dizer palavrões – e ele quase.

Por essa altura, eu teria os meus treze anos e o meu irmão dezassete.

Tempo depois fui treinar ao Belenenses, aos infantis, mas o ambiente no balneário era de tal modo sórdido – choviam os palavrões e as más criações – que eu não voltei lá. Fiquei impressionadíssimo. E não se pense que eu era um ‘menino da mamã’. Embora os meus pais fossem pessoas instruídas, eu passava o dia na rua a jogar à bola, e os meus amigos eram rapazes pobres que viviam perto. Alguns deles descalçavam os sapatos para jogar futebol, com medo de os estragarem, pois se chegassem a casa com os sapatos esfolados esperava-os uma tareia.

O meu pai nessa altura já tinha saído do país, por razões políticas, e a minha mãe estava pouco em casa, porque era professora, pelo que a minha vida era passar o dia com os miúdos ‘da rua’. Mesmo assim, deixei de dizer palavrões. E com esse espírito atravessei o liceu e a universidade (na Escola Superior de Belas-Artes de Lisboa).

No ateliê de arquitetura onde comecei a trabalhar ainda estudante, liderado pelo arquiteto Manuel Tainha, o ambiente era educado. Não era afetado, longe disso, mas era saudavelmente educado. E quando cheguei ao Expresso em 1983 também não me lembro que houvesse um ambiente de caserna, como acontecia noutras redações. Longe disso. A maioria das pessoas era educada. E as que não eram a pouco e pouco deixaram de usar palavrões, talvez contagiadas pelo ambiente geral.

Recordo um episódio que ilustra bem esta realidade.

Uma noite, um grupo de jornalistas do Expresso foi jantar à cervejaria Trindade, na zona do Chiado, e ao chegarmos lá encontrámos um grupo de pessoas da SIC. Acabámos por nos sentar à mesma mesa – e eu fiquei impressionado com as diferenças de linguagem entre uns e outros: enquanto os do Expresso falavam em geral sem palavrões, os da SIC, em cada três palavras, diziam dois palavrões.

Percebi aí a importância do exemplo – e a verdade da afirmação «o exemplo vem de cima».

Em minha casa nunca se disseram palavrões – e na minha família idem. Nesse aspeto – e noutros – tive sorte com a família onde fui cair, do lado da minha mulher.

Mas pode não ter sido só sorte.

Quando tinha os meus 17 anos fui a uma festa de Carnaval na Casa do Alentejo, em Lisboa, a convite de uma namorada da altura. Toquei à porta. Veio receber-me um senhor com ar de folião, muito eufórico, que a minha namorada me apresentou como sendo seu tio.

Usava na cabeça um chapéu de papel, no qual estava escrita à mão a palavra «Merda». Senti-me pessimamente. A festa correu muito mal. Nunca mais voltei a sair com a dita rapariga – que soube depois ter-se casado com um rapaz que conheceu nessa festa.

Nem sempre na vida as coisas acontecem por acaso.