Estamos mais próximos de usar a energia das estrelas

A energia de fusão, que promete ser limpa, barata, segura e inesgotável, poderá ser crucial na transição energética. “Chegará a tempo”, diz Bruno Gonçalves, presidente do Instituto de Plasmas e Fusão Nuclear.

A possibilidade de que a energia que chega às nossas casas possa vir de uma pequena estrela construída na Terra, aprisionada por poderosos campos magnéticos, já esteve mais distante de ser ficção científica. Os cientistas chamam-lhe energia de fusão, e seria limpa, barata, usando um combustível praticamente infinito. É algo com que se sonha desde a segunda metade do séc. XX, mas a esperança é que ainda chegue a tempo de contribuir para o combate às alterações climáticas, no horizonte em que se planeia a transição energética, algures até 2050. 

“A energia de fusão chegará a tempo”, garante Bruno Soares Gonçalves, presidente do Instituto de Plasmas e Fusão Nuclear (IPFN) do Instituto Superior Técnico, ao i, um dia após ser anunciado que se bateu o recorde de energia libertada numa reação de fusão sustentada, no Joint European Torus (JET), em Oxfordshire, no Reino Unido. Durante cinco segundos, átomos de hidrogénio aquecidos ao ponto de se fundirem numa nuvem de particulas, ou plasma, flutuaram num tunel em forma de donute, produzindo 59 megajoules de energia, o suficiente para fazer ferver umas 60 chaleiras de água. Parece coisa pouca, mas foi um passo significativo rumo à energia de fusão, nota Gonçalves. Sendo que os dados do JET mostram que se gastou apenas 0,07 miligramas de deutério e 0,1 miligramas de trítio – ambos isótopos do hidrogénio, o primeiro encontramos na água do mar, o segundo surge durante a própria reação, interagindo com uma quantidade mínima de lítio – quando seria necessário queimar 1,06 kg de gás natural ou 3,9 kg de carvão para produzir essa energia.

Na prática, quando falamos de fusão, falamos da junção de núcleos de átomos. Se todas as reações químicas são resultado de trocas de eletrões, as partículas que rodeiam o núcleo, a energia nuclear que usamos atualmente vem da fissão, da divisão do núcleo do urânio, enquanto a fusão une os pequenos núcleos de hidrogénio, resultando em hélio e numa libertação ainda maior de energia.

O que não quer dizer que a fusão partilhe da insegurança associada à fissão nuclear. “Não há o risco de ser uma descarga descontrolada”, explica Gonçalves, dizendo que não há nenhum risco de incidentes como Chernobil ou Fukushima. “Porque se não tivermos os campos magnéticos, as condições perfeitas, a descarga não consegue continuar a funcionar. Ao contrário de uma reação de fissão nuclear, que pode escalar e continuar a crescer de forma descontrolada”

“As pessoas às vezes associam é a fusão às bombas termonucleares. Mas aí é uma descarga descontrolada, para haver fusão numa bomba de hidrogénio é preciso primeiro detonar uma bomba de fissão nuclear para conseguir criar as condições para isso”, exemplifica. “Mostra o quão difícil é fazer fusão nuclear”.

Aliás, o problema é mesmo essa dificuldade. Mas os cinco segundos de pulso do JET foram “suficiente para provar que se consegue manter uma descarga de forma sustentada durante um período significativo”, salienta o presidente do IPFN. “A limitação é sobretudo pela forma como funciona o JET, a máquina é antiga e não se consegue estender a descarga por muito tempo”, explica. Afinal, o sonho da fusão vem de trás, e o JET surgiu no anos 80, quando a esperança estava em alta, após os soviéticos darem um salto brutal nesta tecnologia.

Desde então, essa esperança foi surgindo e sendo frustrada, tornando a aplicação comercial da fusão uma espécie de Santo Graal da energia, um horizonte maravilhoso mas distante, com alguns descrentes, como reparou um jornalista da New Yorker. “Uma piada que ouvi”, escreveu na revista, “foi que a fusão opera segundo a lei da ‘conservação da dificuldade’. Quando um problema é resolvido, um novo de igual dificuldade surge para tomar o seu lugar”. 

“É verdade que nos apontam que já há trinta anos que o prometemos”, admite Gonçalves, salientando que a investigação da fusão depende de muitos outros avanços tecnológicos, a nível dos materiais em contacto com o plasma – afinal, não é fácil arranjar algo que consiga estar próximo de uma mini-estrela, mesmo estando suspensa por um campo magnético – ou de supercondutores. O caso do JET é um bom exemplo disso. 

“Na altura em que foi desenhado, as bobines que produzem o campo magnético para confinar plasma não eram bobines supercondutoras. Isso impõe uma grande limitação, dado que ao fim de uma descarga de 40 segundos, que é o máximo que se consegue atingir no JET, as bobines têm de arrefecer, o que demora cerca de vinte minutos”, explica Gonçalves, contrapondo-o com um sucessor do JET, o International Thermonuclear Experimental Reactor (ITER), em construção no sul de França.

“Esse problema já será parcialmente resolvido, porque ao passar a usar bobines supercondutoras o ITER poderá ter descargas que vão dos 400 segundos até uma hora de operação. E demonstrar que podemos escalar, ir para descargas quase em contínuo”, explica Gonçalves. “Ainda está em discussão se as máquinas de fusão serão máquinas pulsadas – o que significa que há um pulso, pára, há outro pulso, e há ali pelo meio necessidade de armazenamento – ou se vamos conseguir máquinas em contínuo”, continua. “Obviamente que a máquina em continuo é o grande objetivo. Mas as duas alternativas são viáveis”. 

Aliás, é a potencial estabilidade de um gerador de fusão que tornaria esta energia indispensável para uma transição, reforça o presidente do IPFN. Enquanto praticamente todas as energias renováveis são inconstantes, como a eólica, solar ou hídrica, é preciso uma energia constante, de base, quando todas falharem. Por agora, esse papel tem sido tido pelas energias fósseis ou fissão nuclear. Daí que recentemente a Comissão Europeia tenha proposto considerar temporariamente verdes o gás natural – a energia fóssil menos poluente – ou o nuclear. Mas os investigadores da fusão não desistem de obter respostas. “No meu caso, quero garantir que os meus cinco filhos tenham eletricidade barata daqui a uns anos”, explica Gonçalves. “E que o planeta ainda esteja em condições dignas para eles cá viverem”.