Nem todas as vidas valem o mesmo

Todos os dias morrem meninos às centenas ou aos milhares pelo mundo fora. Mas foi a história do pequeno Rayan que nos agarrou à televisão.

Todos os dias há crianças a morrer de frio e de fome. Todos os dias, nas zonas de guerra, há crianças mortas por bombardeamentos ou tiros dispersos. Todos vemos essas notícias. E, no entanto, durante quatro dias o mundo esteve suspenso da vida de um menino de cinco anos que caiu num poço.

Este simples facto mostra que nem todas as vidas valem o mesmo. 

Não falo evidentemente dos milhões gastos naquela operação de salvamento em que se cortou metade de uma montanha, se abriu um túnel em tempo recorde, se envolveram centenas de homens.

Falo da emoção que varreu o planeta.

Pessoas que diariamente ouvem com indiferença números de crianças mortas por subnutrição ou em consequência da guerra, emocionaram-se até às lágrimas com a notícia da morte do pequeno Rayan. 

Como explicar isto? 

É que há uma diferença abissal entre os números e as pessoas concretas. Uma coisa é ouvirmos números de crianças mortas; outra, muito diferente, é sabermos da morte de um menino de que conhecíamos o nome e o rosto, que se encontrava numa situação trágica e de que acompanhámos as tentativas de salvamento. 

Não estava em causa um número mas um ser humano concreto. Ainda por cima, inocente. E isso fazia toda a diferença.

Esta reflexão é importante no jornalismo. Influenciada pelo marxismo, a imprensa dita ‘de referência’ abandonou durante muitos anos as histórias pessoais, substituindo-as pelas estatísticas e pelos números. 

Tomei mais consciência disso quando assumi a direção do Expresso. O jornalismo que então se fazia nos jornais ‘sérios’ era frio, desumanizado. Os casos particulares não interessavam. Num terramoto, interessavam as causas, interessava o número de mortos, feridos e desaparecidos, e pouco mais. As histórias humanas eram desprezadas. Isso era considerado jornalismo menor.

Num aniversário do Correio da Manhã, telefonou-me uma jornalista da casa pedindo-me um depoimento. E acrescentou:

– O senhor não deve dar nenhuma importância ao Correio da Manhã… 

Como diretor de um jornal ‘sério’, achava a jornalista que eu não deveria ligar a um jornal que, como então se dizia, só falava de crimes e acidentes, de facadas e tragédias.

Mas, para surpresa dela, disse-lhe que estava redondamente enganada. Que dava muita importância ao Correio da Manhã.

Porquê? – perguntará o leitor. 

Porque, como responsável de um jornal, eu estava profundamente interessado em conhecer o mercado, em saber como se comportavam os leitores, por que compravam um jornal e não outro – pelo que o ‘fenómeno CM’, o seu êxito retumbante, me interessavam muitíssimo.

E concluí que uma das razões do sucesso era falar de casos concretos, de pessoas de carne e osso. Enquanto a imprensa ‘séria’ falava de cifras, de números, de estatísticas, o CM falava de pessoas com rosto. E olhando à volta para as revistas que mais se vendiam, desde a Hola! espanhola à nossa Gente, observava-se a mesma fórmula: falar de pessoas, contar as histórias de pessoas. E o que nos emociona, o que nos interpela emocionalmente, não são os números mas as pessoas.

Aí iniciei um trabalho quase invisível mas que aproximou o jornal do público. Não se tratava de copiar o CM ou as revistas do coração. Não queríamos falar daquelas pessoas nem falar dos mesmos temas. A questão era outra: era pegar em certos modelos que eles usavam e aplicá-los aos assuntos que nós queríamos tratar.

Na economia, na política, na sociedade, começámos a dar mais importância aos protagonistas. Começámos a dar rostos às notícias. Em vez de dizermos «O Governo decidiu aumentar os salários dos funcionários públicos», dizíamos «Guterres vai aumentar os funcionários». Em vez de falarmos de «opções do BCP» ou «da Sonae», falávamos em «decisões de Jardim Gonçalves» ou «de Belmiro de Azevedo». E começámos a personalizar as notícias, metendo caras na 1ª página. Chamei a isto ‘personalização da informação’. E começámos a fazer regularmente perfis de pessoas. Quer perfis mais curtos, no jornal, quer grandes perfis, na Revista (onde Felícia Cabrita se notabilizou).

 

A história de Rayan ilustra na perfeição o que acabo de dizer. Todos os dias morrem meninos às centenas ou aos milhares pelo mundo fora. Mas foi a história daquele menino concreto, com nome e com rosto, que nos agarrou à televisão. 

Uma nota final para falar da indigência de certos comentários televisivos. Ouvi vários comentadores dizerem que os pais dos meninos iam precisar de «muito apoio psicológico», como se o caso se passasse na Europa ou na América. Ora, bastava aos comentadores terem feito uma viagem a um país islâmico para saberem que o grande amparo daqueles amargurados pais seria… a religião. E de facto, pouco depois da tragédia, eles diriam:

– Foi a vontade de Deus.

É esta a grande força da religião: minorar o sofrimento humano, acreditando que aquilo que de mau acontece foi por ‘vontade de Deus’. E é este o sentimento dominante nos países islâmicos.