No ciclo de debates que antecedeu as legislativas, António Costa, a meio do debate com Rui Rio, disse-lhe com ar manhoso: «Vi que no programa do PSD desapareceu a ideia de um SNS ‘tendencialmente gratuito’, escrevendo-se em vez disso que ‘ninguém poderá ficar sem assistência médica por razões económicas’. Eu não percebi muito bem… Gostava que me explicasse o que isto quer dizer».
Claro que António Costa não queria que Rui Rio lhe explicasse nada.
A sua intenção era lançar um mote que daí em diante exploraria à exaustão na campanha eleitoral: «O PSD quer pôr a classe média a pagar o SNS». E adiantou que, caso isso acontecesse, passaria a haver «uma saúde para ricos e uma saúde para pobres».
Ninguém contestou estas afirmações, e Rio limitou-se a acusar Costa de «fazer uma campanha negra», pois punha na sua boca o que ele nunca dissera.
Mas isso é política. No plano da lógica, que é por agora o que me interessa, a afirmação de António Costa não fazia qualquer sentido.
Mais: o seu raciocínio deveria levar à conclusão exatamente oposta.
O pagamento pela classe média de serviços prestados no SNS não levaria a que houvesse uma saúde para pobres e outra para ricos; pelo contrário, o sistema que temos é que está a conduzir a passos largos a essa situação.
De facto, já quase só os pobres recorrem hoje ao SNS.
Excetuando as urgências, já quase ninguém da classe média vai aos hospitais do Estado.
Entre outras razões, porque as listas de espera para consultas e para intervenções cirúrgicas são intermináveis, tendo os pacientes de esperar, por vezes… mais de um ano.
Ora, quem tem possibilidades económicas, não vai estar um ano à espera de uma consulta ou de uma intervenção, como é óbvio.
Recorre ao privado.
Além disso, muita gente já está coberta por sistemas de saúde (como a ADSE) ou por seguros de saúde (pessoais ou de empresa) que lhe dá acesso a hospitais particulares.
Com o sistema que temos, o fosso entre os hospitais do Estado e os privados, em lugar de ter tendência para diminuir, vai aumentar.
Dispondo os privados de condições para pagar melhor aos médicos e enfermeiros, os profissionais mais capazes ir-se-ão mudando do SNS para lá, num processo que já se iniciou há algum tempo.
A hemorragia só poderá ser travada se alguma coisa for feita.
E isso implica obviamente mais investimento no SNS.
Ora, como a despesa do Estado já não poderá aumentar muito, pelo contrário, só vejo uma solução: serem os utilizadores do Serviço Nacional de Saúde a financiá-lo parcialmente.
Serem os doentes com possibilidades financeiras a pagar os serviços prestados, ao menos em parte.
Por outras palavras: ser a classe média a ajudar a sustentar o SNS.
Aliás, o princípio do utilizador-pagador é, sempre que possível, o mais saudável, porque aproxima o sistema da verdade.
A situação atual é que não faz sentido e é insustentável.
Só por razões ideológicas pode ser defendida.
É justo que as pessoas sem condições económicas beneficiem de serviços de saúde gratuitos.
É justo que ninguém fique sem tratamento por razões económicas. É uma questão humanitária.
Mas será justo que pessoas com possibilidades económicas não paguem nada ou paguem uma ninharia por serviços de saúde às vezes muito caros?
Chega-se ao cúmulo de pessoas que recorrem a hospitais particulares irem depois ao SNS para este lhes receitar quase gratuitamente as análises e os exames que foram prescritos no privado.
Um SNS financiado de forma mais robusta por quem pode pagar teria possibilidade de prestar melhor serviço, evitando que tanta gente fosse levada a recorrer à medicina privada.
Assim, ao invés do que Costa disse, uma mudança no modelo de financiamento do SNS seria a única forma de inverter a situação atual – que conduziu à degradação das condições nos hospitais públicos, afugentando os que podem pagar e levando à existência de uma saúde para ricos e outra para pobres.
Como já levou a que haja uma escola para ricos e outra para pobres.
E uns transportes para ricos e outros para pobres – pois quase só estes andam nos transportes públicos.
Será este o ‘socialismo à portuguesa’.
Um modelo social criado pela esquerda mas que teve em muitos casos consequências opostas àquelas que os seus defensores esperariam.
Mas, por teimosia, recusam-se a reconhecer o erro.