A água é para lavar os pés

O vinho é indissociável da História Europeia. O vinho é muito mais do que uma bebida. Sem ele, não haveria a nossa civilização – tal como a conhecemos 

Nasci numa quinta onde se produzia vinho, pisei uvas nos lagares e, uma vez, até caí dentro de um deles. Talvez esta queda, qual Obélix no caldeirão da poção mágica, explique a minha paixão pelo vinho – e outras coisas que não vêm ao caso. Gosto tanto de vinho, sobretudo de brancos e espumantes rosé, como os socialistas gostam do poder e dos impostos. 

E eis que descubro que os iluminados da União Europeia tentaram fazer aprovar uma lei que obrigaria as garrafas de vinho a ter avisos contra o cancro nos rótulos – tal como os maços de tabaco. Num ápice, todos os estudos científicos que demonstram que o vinho possui antioxidantes que nos protegem das doenças mais graves, incluindo o cancro, são varridos.

E que milhões de pessoas pudessem perder os seus empregos, também não os preocupou. Obviamente, tão estapafúrdia ideia chocou contra o bom senso da maioria dos deputados europeus e a proposta acabou por ser alterada para a necessidade de se combater o excessivo consumo de álcool. Isto, sim, faz sentido porque se tudo começou com uma bebedeira é normal acabar com outra.

Por detrás desta lei esconde-se a sanha dos Grandes Irmãos e Irmãs que nos vigiam e que sabem o que é melhor para nós, que nos querem ensinar a comer, a escolher as peúgas, e, sobretudo, a pensar. Há uma nova tirania contra a liberdade individual anunciada na literatura distópica do século passado: Bradbury, Huxley, Boye e Orwell toparam-nos a léguas.

A esta combinação de Fascismo e Comunismo junta-se um espírito inquisidor que persegue as heresias contra a fé da vida saudável. E o grotesco dragão que se alimenta da destruição dos valores ocidentais – como a tentativa de substituir a palavra Natal por festividades ou a censura de livros como o Tintim – solta agora a sua chama purificadora contra o vinho. 

Só falta colocarem também um rótulo na pintura de Annibale Carracci O Triunfo de Baco e Ariadne, onde o Deus do excesso ergue um cacho de uvas e Sileno, o seu tutor, vai de caixão à cova em cima de um burro, a dizer o seguinte:

– E no fim morreram todos de cirrose! 

Ou em O almoço dos Barqueiros de Renoir, onde as meninas rechonchudas bebem mais do que os homens, esta nota: 

– E estas doidinhas não chegaram aos trinta anos! 

Aliás, as próprias estátuas do Dionísio grego e do Baco romano podem, pela desgraça que trouxeram à humanidade, receber idêntico tratamento à estátua do Padre António Vieira em Lisboa. E quanto a Dom Pérignon, esse frade alucinado pelas bolinhas do champanhe, que se faça um boneco dele para sofrer o mesmo castigo de Savonarola no centro de Paris. Venha, por fim, a Greta dizer alguma patacoada contra o vinho e o ramalhete fica completo.

Como afirma Hugh Johnson na História Universal do Vinho, o vinho é indissociável da História Europeia: está presente nos cultos pagãos e na religião cristã, é uma das bases da economia desde o mundo antigo até hoje, deu ao homem as primeiras aulas de ecologia, foi durante séculos o único anti-séptico existente durante as cirurgias, foi decisivo na criação dos mosteiros e no povoamento do território, inspirou artistas e escritores, e esteve presente no nascimento da bioquímica. O vinho é muito mais do que uma bebida. Sem ele, não haveria a nossa civilização – tal como a conhecemos.

Voltando às origens, as minhas duas avós viveram quase até aos cem anos bebendo, todos os dias, um copo de vinho às refeições. Aliás, a minha avó paterna tomou sempre os seus remédios bombásticos com o seu Audinet de Bordéus. E quando algum zelador da saúde alheia lhe recordava que isso fazia mal, retorquia, com a condescendência que a idade lhe conferia.

– A água é para lavar os pés!

O meu conselho para as luminárias de Bruxelas é parecido: metam essas cabeças alucinadas em água fria, de preferência debaixo do menino Manneken Pis, e deixem-nos gozar a vida.