Os deuses devem estar loucos…

Perante a ousadia de Putin, espera-se do secretário-geral da ONU a mesma determinação que mostrou na ‘batalha’ do clima, que lhe exigiu o ‘sacrifício’.

O PCP, a caminho da irrelevância, está num embaraço – incapaz de condenar a Rússia, sem sofismas, pela brutal invasão da Ucrânia, recorre a expedientes, nem sequer originais, para negar o óbvio.

O comício que culminou as comemorações do centenário, apesar do contorcionismo de linguagem de Jerónimo de Sousa, confirmou que os comunistas portugueses não conseguem repudiar as políticas de anexação ditadas por Moscovo, ontem na Crimeia, hoje em Lugansk ou Donetsk no leste ucraniano, pretexto para o lançamento da “operação militar especial”, generalizada a quase todo o território.

Escrevemos aqui, há uma semana, que o PCP, juntamente com o Bloco de Esquerda, tinham deixado cair a máscara. Desta vez, já sem máscara, Jerónimo repetiu a ladainha que responsabiliza os EUA pela «escalada belicista», além da «política de contínuo alargamento da NATO para o Leste da Europa».

Ora a Aliança Atlântica é uma velha ‘pedra no sapato’ do PCP, que discorda da sua existência e cuja dissolução voltou a defender.

Hostil à NATO e à União Europeia, Jerónimo quer o desarmamento do mundo, desde que este não inclua nem belisque o potencial militar da Rússia, da China, ou o da Coreia do Norte, convidados habituais da Festa do Avante!.

O PCP esteve e está com as ditaduras e vive o dilema de fingir-se democrata, quando, geneticamente, é contra as democracias liberais ocidentais.

Confrontado com uma agressão sem limites e um cenário de terror e de destruição maciça em várias cidades ucranianas, o PCP descobriu, entretanto, uma ‘terceira via’. Diz que «não tem nada a ver com o governo russo e o seu presidente» […] «que governam a Rússia capitalista». E que é outra a sua «opção de classe».

Graças a este artificio, consta que Jerónimo recolheu os aplausos dos fiéis reunidos no Campo Pequeno, sem repudiar a invasão de um país soberano, que Putin quer ‘atrelar’ à Rússia, na sua ambição de reconstituir a antiga União Soviética.

Se descontarmos a Venezuela, de Maduro, ou a Bielorrússia, de Lukashenko, são escassos os apoios explícitos, alinhados com o novo czar da Rússia, para aniquilar a resistência dos ucranianos.

Sacudida pela grave crise, a Europa despertou, finalmente, do seu torpor, ao aperceber-se que Putin não hesita em colocar em estado de prontidão o seu arsenal nuclear e em atribuir às sanções ocidentais a equivalência de uma ‘declaração de guerra’.

Perante este quadro negro, parece ainda mais caricata a ‘lenga-lenga’ dos ativistas de serviço sobre as ‘alterações climáticas’ – uma das bandeiras das esquerdas radicais –, bem como a histeria à volta das questões ‘identitárias’ ou de género.

Curiosamente, ainda em 2019, durante uma visita às ilhas Fiji e, logo a seguir, na Cimeira do Clima em Madrid, António Guterres proclamava que «a batalha contra a mudança climática é a batalha da minha vida».

Por azar, Putin ‘trocou-lhe as voltas’, rasgou a Carta da ONU e Guterres ficou ‘desmuniciado’ depois de defender, vigorosamente, que «temos de parar a nossa guerra contra a natureza», culpando os líderes mundiais pelo «falhanço» […] «na luta contra as alterações climáticas», algo que considerou como uma «abdicação criminosa».

Vale a pena citá-lo, quando em contraponto ao discurso duro do clima, Guterres trata a bárbara agressão do Kremlin com ‘pinças’, aparentemente convencido de que a «ofensiva à Ucrânia é errada e inaceitável, mas não é irreversível».

A realidade é que a ‘batalha do clima’ não lhe exige camuflado e é infinitamente mais inócua do que a catástrofe na Ucrânia.

Se necessário, esta crise veio demonstrar que existem ameaças muito mais sérias e reais, suscetíveis de por em causa o planeta, do que as profecias da ‘ativista’ Greta Thunberg, repetidas em 2019 na Cimeira da Ação Climática para a Juventude, na sede da ONU, onde foi saudada por Guterres pela ‘coragem’.

Perante a ousadia de Putin, espera-se do secretário-geral da ONU a mesma determinação que mostrou na ‘batalha’ do clima, que lhe exigiu o ‘sacrifício’ de ser fotografado para a capa da revista Time, de «fato e gravata, cenho carregado, água por cima dos joelhos» […] «uma expressão eloquente da tragédia humana em que as alterações climáticas já se transformaram em alguns países», conforme descrevia, eloquente, o DN no verão de 2019…

A tragédia agora é outra e bem mais dolorosa e urgente no plano político, militar, social e económico. Nas televisões portuguesas, os especialistas em vírus e pandemias foram substituídos por generais – alguns estranhamente benevolentes para com a Rússia – e por especialistas avulsos em geoestratégia.

Por muito que custe a Guterres – e para desgosto dos ambientalistas –, as batalhas são outras e a do clima perdeu terreno, enquanto o cessar-fogo marca passo. Os deuses devem estar loucos…