Burlas e burlões

Nem todos os burlões são iguais. Há os burlões por temperamento e os burlões por força das circunstâncias.

Os crimes económicos, de um modo geral, são todos metidos no mesmo saco. E a tudo se chama ‘corrupção’, mesmo quando não é nada disso que se trata. Falências fraudulentas, lavagens de dinheiro, fugas ao fisco, etc., tudo é rotulado de ‘corrupção’ e tratado da mesma forma. 

E os supostos ‘corruptos’ são igualmente nomeados indistintamente. Ricardo Salgado, José Sócrates, João Rendeiro, Oliveira Costa, Zeinal Bava, Helder Bataglia, etc., etc., veem os seus processos equiparados e entre eles não se fazem distinções.

São todos iguais. Todos ‘corruptos’. Ponto final.

Ora, as coisas têm de ser analisadas com mais rigor.

Nem todos os crimes económicos são corrupção, nem todos os seus autores são iguais.

Há criminosos e ‘criminosos’.

Há os que deliberadamente entraram pelo caminho da burla – e os que foram empurrados para ela, ao verem-se perdidos.

Há os burlões por temperamento e os burlões por força das circunstâncias.

O protótipo do burlão português é Alves dos Reis.

Iniciou a atividade profissional como empregado dos caminhos de ferro numa antiga colónia africana, e à custa de expedientes e enganos foi subindo na sociedade e na vida – até à grande burla de encomendar notas à mesma casa inglesa que imprimia as notas do Banco de Portugal.

Ou seja, em vez de falsificar notas de banco, fez uma coisa muito mais simples: falsificou a ordem de fabricação das notas. Portanto, as notas eram verdadeiras. Eram feitas pela mesma empresa, nas mesmas máquinas que fabricavam as outras. A fraude era aparentemente impossível de detetar. E só foi descoberta quando, por puro acaso, alguém deu por que duas notas tinham exatamente o mesmo número. 

De facto, para não fazer uma numeração nova – que facilmente identificaria as notas ‘falsas’ -, Alves dos Reis mandara fabricar as notas com números iguais às de outras que estavam em circulação. E só um ‘azar’ o tramou. 

Alves dos Reis era o ‘protótipo do burlão’, porque não tinha necessidade nenhuma de ser delinquente. 

Era um homem dotado, poderia ter tido uma boa vida. Mas quis mais. Quis ser rico, frequentar os salões da alta sociedade, hospedar-se em grandes hotéis, presentear as mulheres com joias caras – e para isso enveredou pelo caminho do crime. 

Caso semelhante foi o de José Sócrates. Podia ter-se limitado a ser ministro ou primeiro-ministro, cargo para o qual até tinha talento. Mas não. Também quis enriquecer. Tornar-se um novo-rico. E pôs-se a inventar esquemas engenhosos para ganhar dinheiro facilmente… e o esconder. 

Tal como Alves dos Reis, Sócrates tem ‘alma de burlão’. Não tinha necessidade nenhuma de recorrer a burlas. Mas fê-lo. Porque, como o outro, queria mais, sempre mais.

Totalmente diferente é o caso de Ricardo Salgado – que até se terá envolvido com Sócrates em esquemas obscuros.

Salgado foi durante quase 20 anos um banqueiro normal, credível, respeitado pelos seus pares. Mas a crise de 2008 veio colocá-lo numa situação primeiro difícil e depois desesperada. E, como os jogadores de casino, entrou num processo de fuga para a frente.

Começou a inventar esquemas, não para enriquecer, mas para tapar os buracos que por todo o lado se iam abrindo no seu grupo. Ainda pediu ajuda ao Governo, mas Passos Coelho não cedeu e o desenlace foi inevitável. Aliás, por essa razão, Mário Soares veio a público atacar Coelho. 

Entre Salgado e Sócrates há, pois, um abismo. 

O segundo quis subir mais na vida recorrendo à burla; o primeiro, quando estava lá em cima, viu-se enredado numa complicadíssima teia de problemas financeiros e lançou-se em manobras desesperadas para salvar a instituição a que presidia. 

O segundo planeou friamente crimes em seu proveito; o primeiro entrou pela via do crime quando viu o barco de que era comandante a afundar-se. 

Mas entre os dois há um exemplo intermédio.

Refiro-me a João Rendeiro (cuja mulher o Estado tratou miseravelmente, como aqui registei há umas semanas, esvaziando gratuitamente a casa onde a senhora vive em prisão domiciliária).

 

Rendeiro enveredou por caminhos ínvios quando o seu banco, o BPP, começou a dar sinais de fraqueza.

Nesta medida, tal como Salgado, foi ‘empurrado para o crime’.

Mas depois, no processo que se seguiu, acabou por revelar ‘alma de burlão’.

Ao dar instruções à mulher para vender quadros que estavam sob a guarda desta, à ordem do tribunal, substituindo-os por cópias, Rendeiro revelou uma personalidade imaginativa voltada para a fraude, capaz de inventar expedientes para enganar o parceiro. 

As dificuldades fizeram vir à tona uma certa propensão para o crime.

Julgo ter ficado claro que nem todos os casos de crimes económicos são iguais.

E que não se pode falar sempre de ‘corrupção’ e de ‘burlões’. 

Há homens que nasceram para enganar os outros e que querem subir na sociedade à custa de fraudes, ter uma vida de luxo e ter poder; e há aqueles que, podendo cometer as mesmas faltas ou até faltas mais graves, foram empurrados para o crime pelas circunstâncias. E que, noutro contexto, teriam um comportamento normal. 

Ricardo Salgado acaba de ser condenado a seis anos de prisão efetiva. 

Admito que a pena tenha sido bem aplicada no quadro das leis que existem. 

Mas os atos cometidos por José Sócrates, embora tenham tido consequências sociais muitíssimo menores, tiveram no plano moral uma gravidade superior.

Um agiu em desespero e em prol da instituição; o outro agiu fria e exclusivamente em proveito próprio. Não foi empurrado para nada: foi ele que criou a situação. E se calhar nunca será condenado ou terá uma pena mais leve.

São as tais injustiças em que a Justiça é pródiga.