Sexualidade. As celebridades que quebram tabus

Terão as mulheres “prazo de validade”? Por que será tão importante que celebridades mulheres assumam a sua homossexualidade? Por que há uma diferença de exposição das figuras públicas brasileiras e portuguesas e quando iremos romper com a ideia de que o sexo está ligado à juventude?

As mulheres e o sexo. O sexo e as mulheres. São cada vez mais as mulheres, com destaque para as celebridades femininas, que quebram tabus e expõem a sua sexualidade ao mundo. Contudo, a ideia preconcebida de que estas têm um “prazo de validade” parece continuar enraizada na sociedade, mesmo que um pouco “disfarçada”. Por isso, quando uma figura pública de 72 anos fala abertamente sobre a sua orientação sexual, sobre a maneira como vê o sexo e a importância que lhe dá, é quase que uma “alavanca” ou “derrubar de murro” para a passagem de tantas outras que ganham força com a “transparência”. Ainda há muita gente que associa o sexo à juventude, pele esticada e corpo “firme”. Outros, associam o sexo à procriação, defendendo que, depois de mãe, a mulher deixa de se poder manter ativa sexualmente. Mas então para onde vai o desejo, o tesão?  Por que razão continua a ser diferente olhar para um casal de lésbicas e um casal de gays? Continuarão as mulheres mergulhadas numa invisibilidade que lhes quer roubar a líbido? Por que existe uma grande diferença na exposição entre celebridades brasileiras lésbicas e portuguesas?  E por que razão essa exposição é importante?

A cantora brasileira Simone, atualmente com 72 anos, nunca teve “papas na língua”. E, ao que parece, o tempo não a transformou. Na semana passada, numa entrevista a O Globo, a propósito do seu novo disco Da Gente, lançado no dia 18 de março, a artista aproveitou para falar do amor que sente por ambos os sexos, revelou o abuso sexual de que foi vítima em criança e que impactou para sempre a sua relação com os homens, admitiu que o que mais a tem inspirado tem sido o tesão e garantiu que, mesmo com 72 anos, o sexo continua a ser importante. Ao jornal brasileiro, a cantora garantiu que nesta fase está “apaixonada pela vida”. E é precisamente esse o sentimento com que “regou” o novo disco. Segundo O Globo, o trabalho soa como “um projeto dos anos 1970”, que traz “o vigor e a musicalidade com que Simone abalou os alicerces da MPB no seu início de carreira”, trazendo também um “tom esperançoso”. Além da vontade de fazer “algo bonito” após dois anos de pandemia, a “culpa” do resultado, segundo a artista, é do “tesão”. Também o desejo e sensualidade se encontram estampados na nova produção. Boca em brasa, A gente se aproveita e Nua, são alguns dos títulos das canções que integram o disco. Interrogada sobre a maneira como sempre foi “corajosa” em relação às suas escolhas, Simone explicou que nunca se reprimiu, pois “só se vive uma vez”, contando que nunca falou com a sua família se tinha um relacionamento com um homem ou com uma mulher. Na verdade, a cantora não passou por nenhuma “transição”. Segundo a mesma, “as coisas foram acontecendo”: “Lembro que, quando eu tinha 7 anos, minha irmã tinha uma amiga que eu adorava ver. Não ficava com tesão, mas sentia uma coisa… Na minha adolescência em Salvador, fui muito cortejada por mulheres, mas nunca tive nada. Tinha uns caras que eu queria namorar e não me quiseram. Aí, falei: ‘Ah tá, então, vou para quem me quer’. Fui embora! Não foi transição, foi acontecendo. Aquela coisa do Martinho: ‘Já tive mulheres de todas as cores, várias idades, muitos amores’”, explicou a cantora. Relativamente à maneira como as pessoas se referem a pessoas que gostam do mesmo sexo, Simone admitiu que não gosta de usar a palavra “sapatão”. “Também não acho ‘lésbica’ bonito. Gosto da palavra ‘gay’, acho alegre!”, contou. No que toca ao sexo, a artista defende que “não é a coisa mais importante do mundo”, mas que “faz questão”: “Gosto de namorar, de transar, de sentir prazer. Estou bem viva sexualmente”.

 

A exposição no brasil

Pouco tempo depois, também a atriz Maitê Proença “abriu a porta” da sua intimidade e falou, em entrevista à revista brasileira Veja, sobre o seu relacionamento com a cantora Adriana Calcanhotto, com quem namora desde o ano passado. A artista, de 64 anos, que nunca havia tido uma relação séria com uma mulher antes, revelou que a sua vida sexual hoje está “bem resolvida”: “Agora é bem mais legal, sim. Antigamente, eu estava lá investigando, experimentando um pouco aqui e ali. Precisei fazer muitas experiências para chegar a um lugar mais livre e relaxado”, afirmou, acrescentando que “depois de uma determinada fase da vida, tem de se ficar com pessoas com quem se consiga conversar, para não ter de traduzir para o outro tudo o que percebe do mundo”. Contudo, no princípio, nem tudo foi fácil. À publicação, a atriz admitiu que sofreu preconceito graças ao namoro revelado publicamente em novembro. “Acho que neste momento as pessoas estão mais comedidas com relação ao preconceito, elas têm medo das consequências. Ainda assim, recebi mensagens nas redes do tipo: ‘Você me decepcionou!’. Ou: ‘Isso é pecado!’. Ora, com homem não é pecado, mulher é?”, interrogou. Maitê também explicou o motivo de evitar expor o namoro: “Acho bonito ser discreta neste mundo em que a vulgaridade corre solta em todos os meios. Eu me reservo ao direito de manter essas coisas na intimidade, de não ficar dando satisfação à sociedade, mas ao mesmo tempo também não escondo o que estou fazendo”.

Além de Simone, Maitê Proença e Adriana Calcanhoto, são muitas as celebridades brasileiras que ao longo dos anos têm assumido a sua homossexualidade. A cantora Daniela Mercury e a jornalista Malu Verçosa casaram-se em 2013, no Brasil, numa cerimónia no civil. No dia 12 de junho de 2021, a artista publicou nas redes sociais uma carta à esposa: “Amor é casa cheia de você. Com o seu sorriso para enfeitar. E a sua roupa espalhada. É a alegria de escutar sua gargalhada. Seu perfume pela casa e essa vontade de viver. E quando meu corpo encontra de madrugada. Eu não preciso de mais nada”, lê-se na publicação do Instagram. A jornalista também costuma publicar declarações de amor nas redes, falando sempre abertamente sobre o amor das duas e o quanto acredita ser “revolucionário e inspirador” para outros.

A cantora Ana Carolina assumiu ser bissexual em 2005 e já revelou que só há seis anos é que se começou a relacionar com mulheres. Após romance de quatro anos com a atriz Letícia Lima, desde 2020 que se encontra num relacionamento com a cantora italiana Chiara Civello. Apesar de manterem o relacionamento discreto, as duas não deixam de fazer declarações nas redes sociais. Após um relacionamento de quase 20 anos com o empresário Matheus Braga, a jornalista Fernanda Gentil, resolveu dar uma nova oportunidade ao amor, desta vez com uma mulher, a jornalista Priscila Montandon. Juntas desde 2016, com casamento oficializado dois anos depois, o casal é discreto nas redes sociais. A jornalista mineira tem perfil fechado, mas a apresentadora da Globo costuma publicar fotografias das duas: “Meu amor por você não está no tempo em que escrevi uma cartinha; tá no fato de você fazer o tempo parar, também, pra eu escrever uma cartinha. Não está no tempo em que passamos juntas; tá na saudade que sinto de você enquanto estamos juntas. Meu amor por você não tá na nossa casa; tá na nossa alma”, escreveu Fernanda no aniversário de Priscila.

 

A “descrição” em Portugal

Em Portugal, o paradigma parece ser diferente. As celebridades portuguesas têm preferido manter a sua “intimidade” dentro das quatro paredes. Apesar de muitas já terem falado da sua homossexualidade, geralmente, não falam tão abertamente como no Brasil. “Por uma questão cultural, social ou mesmo pelo contexto histórico no Brasil, a gente acaba tendo um pouco mais abertura para falar nessas coisas”, explicou ao i Marcela Aroeira, psicóloga brasileira. “Eu acredito que o movimento feminista tem ganhado muita força aqui no Brasil. Acho que com isso as mulheres estão-se sentindo mais empoderadas, mais fortalecidas e autónomas para falar mais abertamente sobre a própria sexualidade, as próprias vivências. Isso pode ter uma grande influência!”, continuou. De acordo com a psicóloga, o facto de Portugal ter estado “há pouco tempo” numa ditadura, pode influenciar a forma discreta com que o povo português lida com estas questões. “Talvez por isso, as mulheres se sintam um pouco menos à vontade. Aqui no Brasil, apesar de haverem muitos tabus e uma hipocrisia perante o corpo da mulher, aquela ideia de no Carnaval ‘ser tudo permitido’, mas nos outros dias não… Ainda assim, acredito que aqui tenha mais essa força. As mulheres estão a permitir-se mais, a conhecer-se mais. Fazer processos individuais de autonomia, busca de si mesma, processos terapêuticos, vivenciais, rodas de mulheres”, acrescentou.

Um dos casais mais conhecidos e queridos do público é diretora de conteúdos e produção da Plural Gabriela Sobral e a atriz Inês Herédia. No mês passado, as duas fizeram quatro anos de casadas e a artista de 32 anos publicou uma mensagem romântica sobre a sua esposa de 56 com quem tem dois filhos: os gémeos Luís e Tomás, de 3 anos. “Eu apaixonei-me no momento em que ela me agarrou assim pela cintura pela primeira vez. Ela apaixonou-se quando me ouviu declamar ‘Em Hydra, evocando Fernando Pessoa’ da Sophia, estávamos no meio do mar”, começou por escrever numa publicação do Instagram, ao lado de um vídeo de ambas a dançar. “Hoje fazemos 4 anos de casadas. Um brinde à maior montanha-russa das nossas vidas. Quero é viver-te”, completou.

A actriz Ana Zanatti, atualmente com 72 anos, assumiu-se como lésbica durante a apresentação pública do primeiro movimento da sociedade civil de defesa dos direitos dos homossexuais pelo casamento, que se realizou em junho de 2006.  “Estou a reclamar os meus direitos como cidadã que quer ou não casar”, afirmou na altura. A artista frisou ainda que não aceitava “perder direitos por ser uma minoria”.

Em Agosto de 2017, a ministra Graça Fonseca falou sobre a sua orientação sexual ao Diário de Notícias dando um passo histórico:  foi a primeira vez em Portugal que um político assumiu a homossexualidade publicamente. Para a governante, na altura, essa foi, acima de tudo, uma “afirmação política importante para combater o preconceito”. “Se as pessoas começarem a olhar para políticos, pessoas do cinema, desportistas, sabendo-os homossexuais, como é o meu caso, isso pode fazer que a próxima vez que sai uma notícia sobre pessoas serem mortas por serem homossexuais pensem em alguém por quem até têm simpatia”, afirmou. Na entrevista, acrescentou que iria “manter intacta” a sua privacidade, apesar de considerar ser possível quebrar o conservadorismo e discriminação. “É indiferente se estou com um homem ou com uma mulher. Não altera em nada a forma como faço o Simplex, como faço o orçamento participativo”.

 

A invisibilidade da mulher mais velha

“Na sexualidade, o normativo é aquilo que para cada casal fizer sentido. Felizmente, a sociedade começa a encarar com maior naturalidade outras tipologias de casal que não o heterossexual. Contudo, é comum que ainda se verifiquem algumas resistências a esta aceitação, pois todas as mudanças estruturais demoram tempo a ocorrer e é preciso dar tempo a que haja uma familiaridade e adaptação a outros paradigmas”, afirmou a sexóloga Catarina Lucas, acrescentando que quando algumas figuras públicas falam com naturalidade sobre as suas preferências afetivas ou sexuais, “deverá ser encarado de forma positiva, já que é conhecido o impacto que o comportamento de figuras públicas tem na sociedade”. “Ter a possibilidade de ver estas celebridades encarar com naturalidade todas as formas de amor, passa uma mensagem clara de que o amor e a sexualidade devem ser vividos dentro dos parâmetros de cada um define e que nada existe de errado com isso”, defende. Interrogada sobre o porquê das mulheres serem mais discretas do que os homens no que toca à sexualidade, a especialista acredita que este é “um comportamento ainda muito enraizado”. Segundo a mesma, as mulheres “ainda mantêm alguma tendência para serem mais discretas e falarem pouco de assuntos íntimos”, logo, quando uma mostra esse lado íntimo “pode ser recebida com maior surpresa, o que não significa que é menos bem vista do que se fosse um homem”.

Além disso, de acordo com Maria João Faustino, especialista em violência sexual e feminismo, “há uma grande diferença na maneira como as pessoas olham para um casal de lésbicas e um casal de gays”. “O amor e a sexualidade entre mulheres é qualquer coisa que sempre foi muito invisibilizada. Agora começa a haver cada vez mais visibilidade lésbica, cada vez mais rostos, são cada vez mais as mulheres que falam disso, mas ao mesmo tempo há uma certa fetichização em torno disso e, muitas vezes, uma apropriação pelo male gaze (olhar masculino)”, elucidou.  “Continuamos no fundo a ter uma matriz e como modelo, uma relação entre um homem e uma mulher e partir do pressuposto que as relações, ditas ‘normais’ acontecem em casais heterossexuais. Portanto, temos uma estrutura e um modelo heteronormativo que torna as outras expressões secundárias, ou desviantes. Sobretudo, quando falamos da sexualidade entre mulheres mais velhas, entramos num campo de profunda invisibilização. Estas mulheres já são invisibilizadas em quase todas as dimensões, mas falar da sexualidade é ainda um tabu”, reforçou. Para ambas as especialistas “tendemos a ver a sexualidade como algo que é do domínio da juventude”. Contudo, explica Catarina Lucas, “o sexo faz sentido em todas as idades, sendo por isso importante manter a intimidade após os 50, 60 ou 70, etc”. Para a sexóloga, o que dita a diminuição do desejo e do sexo nestas idades “não é exatamente a idade” mas o facto de, tendencialmente, “nestas idades as pessoas já estarem em relações há muito tempo, o que leva a uma diminuição do desejo”. “Se iniciarmos uma relação nova aos 50 anos, o desejo sexual será novamente ativado pela novidade e, a maturidade, poderá levar a uma vivência da sexualidade completamente diferente”, acrescenta. Já Maria João Faustino defende que, por isso, “é muito importante que as celebridades falem sobre essas coisas abertamente”, pois sempre que há uma figura pública mais velha a falar, expor e dar rosto à sexualidade entre mulheres, “abre-se uma oportunidade para revelar estes assuntos”.

Por sua vez, Catarina Beato, criadora de conteúdos e mentora de relacionamentos, sente-se muito contente por no seu trabalho de mentoria receber mulheres cada vez mais velhas: “De facto é preciso terminar com esta questão de que a sexualidade tem um prazo de validade. Isto foi sempre muito mais forte para as mulheres porque a sexualidade acaba por estar muito associada à questão da procriação. Portanto, a partir do momento em que a mulher deixa de poder ter filhos há quase um ‘clique’”, afirmou ao i. “Há uma associação completamente errada entre o sexo e fazer bebés. Nada disso! O sexo é um canalizador energético muito forte, é a busca do prazer, do autoconhecimento, porque o sexo pode ser também a sós, na descoberta do corpo”, sublinhou, acrescentando que isso leva a uma questão muito importante, “mulheres que já não olham a questão da masturbação como um mito e que vão descobrindo o prazer”. “Se calhar para a minha mãe, que é uma mulher de 71 anos, antigamente a masturbação era um mito. Foi descobrindo ao longo da vida e perdendo essas vergonhas. Para mim, para quem de facto a masturbação já não foi um mito, acredito que chegarei aos 100 anos muito consciente da vida da minha sexualidade”, exemplificou.

Segundo a mentora, é “fundamental que as mulheres percebam que não têm um prazo de validade”: “Se estamos a caminhar para aí? Eu acho que sim. Temos quebrado tabus, algumas dessas ideias. Mas ainda temos um caminho muito longo a fazer, porque continuamos a subvalorizar a questão da juventude. Ou seja, a achar que as coisas terminam quando a pele deixa de estar esticada, quando deixamos de ter um corpo firme. Mas não!”, rematou.