A hora da China

Zelensky vestiu a pele de herói, os ucranianos (mesmo os russófonos) arregaçaram as mangas e fizeram frente aos tanques russos, as baterias antiaéreas começaram a abater aviões e helicópteros, e aquilo que se previa um passeio para o Exército russo – numa espécie de prolongamento das manobras militares realizadas na fronteira – transformou-se num inferno.

Putin já começou a justificar-se, o que é sinal de que as coisas não lhe estão a correr bem.

O discurso comicieiro que fez num estádio de futebol em Moscovo foi o expoente máximo, mas não único, de uma atitude defensiva.

Meteu-se num trinta e um e agora procura justificá-lo, pois não sabe bem como sair dele.

Diz que a invasão da Ucrânia era indispensável para defender populações russófonas que estavam a ser vítimas de «genocídio».

Mas essa afirmação é desmentida pelo próprio modo como se processou a operação – com uma das frentes a Norte, na direção de Kiev, com o objetivo óbvio de proceder a uma mudança de Governo, substituindo Zelensky por um sósia de Lukashenko.

Recapitulemos os factos.
A Rússia invadiu a Ucrânia na madrugada do dia 24 de fevereiro, em três frentes de combate: Norte, Leste e Sul.

A Leste e a Sul, onde se situavam as regiões separatistas, Putin não esperava resistência: os russos seriam recebidos como libertadores.

A Norte, calculava que Kiev – situada a menos de 100 Km da fronteira russa – seria alcançada em pouco tempo, fazendo cair o poder sem luta.

No próprio dia da invasão, o DN escrevia: «Com total superioridade aérea e o controlo de um aeroporto junto da capital, a tomada de Kiev pode estar por horas».

Zelensky era um cómico, não era um guerreiro, à primeira ameaça a sério fugiria com as pernas a tremer para um país do Ocidente, e na capital ucraniana seria colocado um homem ‘colaborante’.

Quanto à região Leste, seria convenientemente ‘limpa’ e aí surgiriam os dois Estados já reconhecidos pela Rússia: Donetsk e Luhansk.

Desta forma se ‘pacificaria’ a Ucrânia.

Quando o Ocidente acordasse, tudo estaria concluído.

Os Estados Unidos protestariam, a UE também, haveria umas sanções – mas o facto estaria consumado e não haveria modo de voltar atrás, como não houve na Crimeia.

Só que estas contas saíram completamente furadas.

Zelensky vestiu a pele de herói, os ucranianos (mesmo os russófonos) arregaçaram as mangas e fizeram frente aos tanques russos, as baterias antiaéreas começaram a abater aviões e helicópteros, e aquilo que se previa um passeio para o Exército russo – numa espécie de prolongamento das manobras militares realizadas na fronteira – transformou-se num inferno.

Acossadas, as tropas russas começaram a retaliar brutalmente, bombardeando escolas, prédios e hospitais, arrasando cidades, espalhando a morte.

A opinião ocidental colocou-se esmagadoramente ao lado da Ucrânia, levando os seus governos a tomar medidas rápidas.

Zelensky tornou-se popular e Putin o símbolo do mal.

Enquanto o primeiro se apresentava de rosto humano no seu gabinete do palácio do Governo de Kiev, donde teimosamente não fugiu, falando à razão e ao coração das pessoas, Putin mostrava ao mundo uma máscara gelada no ambiente assustador do Kremlin.

Escolher entre um e outro não oferecia dúvidas.

Perguntar-se-á: como é que Putin, sendo um homem que vem dos serviços secretos e devia estar bem informado, falhou tão clamorosamente os seus cálculos?

 Já o escrevi em crónica anterior: Putin vive numa bolha, rodeado de uma corte que tem medo de lhe dizer a verdade.

Quando ele diz «Isto é verde», os colaboradores têm de repetir que é verde, ainda que seja vermelho.

Ninguém tem coragem para o enfrentar – mesmo para o ajudar a ver a realidade.

Recorde-se que as estatísticas que apresentavam a Estaline eram falseadas, para os mensageiros não terem de suportar a sua fúria.

Ora Putin decidiu há muito tempo invadir a Ucrânia, criando ali um Estado tampão entre a Rússia e o Ocidente; e quem se atrevesse a levantar dificuldades a este projeto seria marginalizado.

O plano avançou, assim, sem o conveniente debate.

Isto explica em boa medida os erros de cálculo russos.

E as consequências desses erros surgiriam em cascata.

Como a campanha fora calculada para durar escassos dias e começou a arrastar-se por semanas, a logística falhou: o material destruído não foi substituído, as munições escassearam, as rações de combate esgotaram-se.

Os soldados russos têm fome: quando chegam a qualquer povoação, a primeira coisa que procuram é comida.

Putin está num beco.

Daqui por diante, a única coisa que poderá fazer é causar mais destruição: mandar mais mísseis, arrasar mais hospitais, mais escolas, mais depósitos de combustível, matar mais gente, à espera que a Ucrânia se renda pela força bruta.

Mas quanto maior for a destruição, mais odioso ele se tornará.

E mais difícil será alguém apoiá-lo – com a China à cabeça.

Até aqui, a China tem jogado o jogo do ’não me comprometa’.

Não quer apoiar abertamente Putin mas também não quer deixá-lo sozinho contra o Ocidente.

Mas se Putin enveredar pelo caminho da destruição maciça é impossível à China manter-se neutral: se o fizer, tornar-se-á igualmente odiosa.

Ora, a China tem no Ocidente um grande mercado e não quererá perdê-lo pelo apoio suicida a um líder encurralado.

Neste momento, só a China pode travar a Rússia – pois é a única nação com capacidade para a pressionar efetivamente.

Sem a China, a Rússia não poderá sobreviver.

Já isolada do Ocidente, estrangulada por sanções económicas, a Rússia tem na China a única possibilidade de fazer trocas significativas com o exterior.

E isto oferece a Xi Jinping uma grande oportunidade: surgir perante o mundo como o líder que conseguiu a paz.

A nível planetário, aumentará significativamente o seu prestígio político.

Mas, para isso, o presidente chinês tem de deixar claro a Putin que lhe retirará o apoio se ele optar pela via do terror.

Que, nesse caso, o deixará cair.

E o Ocidente tem de proporcionar a Putin uma saída airosa.

Só estes dois fatores conjugados conseguirão evitar uma enorme tragédia.