terá sido uma expedição secreta ordenada pelo rei dom manuel i a descobrir a austrália e a cartografar as suas costas um século antes dos holandeses e 250 anos antes do capitão cook?
as provas que apontam neste sentido continuam a acumular-se. um documento-chave a favor da descoberta pelos portugueses é o atlas vallard, um atlas do mundo então conhecido e produzido em dieppe, norte de frança, no ano de 1547. este documento único contém dois mapas de um continente enigmático cujo feitio e posição possuem uma incrível semelhança com a austrália.
porém, num texto que acompanha a recente edição fac-similada do atlas vallard, um académico português recusa a teoria de que estes mapas se teriam baseado em cartas desenhadas por marinheiros de uma expedição ordenada pelo rei d. manuel. pelo contrário, mantém que os lusitanos teriam apenas «uma noção muito vaga do continente australiano» e que o melhor que conseguiriam seria «apenas vislumbres dele».
quem tem razão? há no mínimo uma certa ironia no facto de um professor português se juntar às hostes dos que contestam a hipótese, quando a opinião dos académicos na austrália começa a inclinar-se a favor da descoberta portuguesa.
john molony, professor emérito de história na universidade nacional da austrália, uma das mais destacadas universidades mundiais, acaba de fazer um estudo detalhado dos nomes de santos cristãos que aparecem em oito locais do que, no mapa vallard, se assemelha à costa leste da austrália. a sua pesquisa mostra que todos estes nomes têm uma clara ligação à igreja portuguesa do século xvi – e, ainda mais significativamente, à índia portuguesa. com base nos seus resultados, molony conclui que não podem restar dúvidas de que os nomes atribuídos a estes lugares foram obra de marinheiros portugueses, e de que o mapa vallard se baseia portanto em cartas marítimas portuguesas.
os resultados do professor molony constituem um poderoso argumento a favor da descoberta portuguesa da austrália, e recebem um forte apoio de outra prova que viu recentemente a luz do dia. trata-se de um testemunho que regista a partida de uma frota do rei d. manuel do porto de cochim, no sul da índia, a 4 de maio de 1521.
até aqui pensava-se que, devido à política de sigilo intransigentemente imposta pelas autoridades portuguesas da altura, não existia qualquer registo em primeira mão da viagem. o relato da partida da frota portuguesa só recentemente se tornou acessível, graças a um projecto financiado pela eu para digitalizar arquivos portugueses com relevo patrimonial. este conjunto particular de documentos fazia parte de uma colecção intitulada ‘documentos sobre os portugueses em moçambique e na áfrica central’. acredita-se que o autor do relato que regista a partida da frota da ilha do ouro seja o controlador do tesouro da índia de d. manuel, pedro nunes (mais tarde reitor da universidade de lisboa), que se sabe ter estado em cochim nessa altura. ele descreveu os quatro navios que participaram na expedição, registou os seus nomes e o dos seus quatro capitães.
nada há de surpreendente acerca da identidade do comandante da expedição, cristóvão de mendonça, um nobre e membro da casa de d. manuel. mendonça aparece como capitão do navio que lidera a frota, a nau são cristóvão. a principal revelação é a identidade do segundo comandante – pedro eanes ‘o francês’, um prestigiado capitão de origem francesa. agora ao serviço de portugal, comandou uma nau na grande armada de 18 navios que zarpou de lisboa em direcção à índia em 1519. mendonça também capitaneava uma nau (tal como pedro nunes), mas foi a eanes que foram confiadas as ordens seladas de d. manuel para o governador português na índia, diogo lopes de sequeira, decretando que mendonça teria o comando da frota para procurar a lendária ‘ilha do ouro’, que se acreditava estar «para lá da ilha de sumatra».
a confirmação de eanes como segundo no comando da exposição esclarece de uma penada um dos grandes enigmas dos mapas vallard – a mistura enigmática de ortografia portuguesa e francesa em alguns dos nomes dos lugares costeiros. até aqui, supunha-se que esta mistura havia sido obra do cartógrafo francês do mapa vallard em dieppe. mas eanes trouxe consigo uma reputação notável de especialista em navegação e cartografia, por isso restam poucas dúvidas de que mendonça o teria nomeado cartógrafo da expedição. assumindo que o domínio do português escrito por eanes estaria longe de ser perfeito, a mistura de português e francês em alguns dos nomes no mapa tem agora uma explicação óbvia.
o mapa vallard que se parece com a costa oeste da austrália, por exemplo, contém um total de 54 nomes de lugares, a grande maioria deles escrita em português. porém, em oito localizações os nomes não estão escritos em português, mas em francês – por exemplo ‘cap vermeil’ (uma descrição precisa de red cliff, um marco na costa do território setentrional da austrália), ‘cap de vert’, ‘cap double’ e ‘gouffre s. fransois’ (exmouth gulf, próximo do trópico de capricórnio). é quase como se eanes tivesse assinado o mapa em francês uma e outra vez, apenas para mostrar que esteve ali.
eanes recebeu o comando do segundo navio da expedição à ‘ilha do ouro’, uma caravela chamada rosayro. os outros dois navios eram mais pequenos. um deles, o sant antónio, comandado por francisco pollees, aparece descrito como um bergantim, e o outro, capitaneado por gonçalo homem, é uma embarcação típica do sul da ásia conhecida por prau. este pequeno navio aparece referido como propriedade pessoal de homem, mas o registo acrescenta que foi especialmente adaptado a expensas do rei de forma a poder participar na viagem.
a grande viagem de descoberta de mendonça durou dois anos. o mapa vallard sugere que após da sua partida de cochim a 4 de maio de 1521 a frota navegou até ao norte da austrália, próximo da actual darwin, antes de virar para sudoeste de forma a percorrer e cartografar toda a costa oeste da ‘ilha do ouro’, atingindo o seu ponto mais meridional, o cabo leeuwin. a partir daí, aparentemente os navios fizeram-se ao mar, varrendo o oceano índico até chegarem a sumatra. um breve registo indica que o navio-almirante estava de volta a malaca a 10 de janeiro de 1522, para ser reparado e abastecer-se de provisões. na segunda etapa da viagem, os navios parecem ter feito o mesmo trajecto da primeira viagem até à austrália setentrional, antes de virarem a leste através do golfo de carpentária e aí, com dificuldade, aberto caminho através do perigoso estreito de torres, semeado de recifes, para atingir a costa leste da austrália.
a afirmação do historiador português de que as viagens nunca ocorreram e que, em vez disso, mendonça, temendo o desconhecido, ordenou à sua frota que voltasse para trás quando atingiram os mares ao largo da sumatra meridional, pode ser prontamente rebatida. resumidamente, baseia-se na impossibilidade de mendonça ter circum-navegado a austrália e regressado a malaca num curto espaço de tempo.
esta conclusão é perfeitamente legítima – o único problema é que nunca escrevi ou sequer sugeri remotamente que mendonça teria circum-navegado a austrália. pelo contrário, o que escrevi deveria ser perfeitamente claro: a expedição de mendonça (para descobrir a ‘ilha do ouro’, como ordenado por d. manuel) explorou e cartografou as costas da austrália em duas viagens distintas – a primeira descendo a costa oeste em 1521, e só então, após ter feito uma paragem para reabastecimento em malaca, ao longo de toda a costa leste da austrália e grande parte da costa sul em 1522-1523. nesta viagem, acredito (com base nos convincentes indícios do mapa vallard) que mendonça também descobriu e cartografou a ilha do norte da nova zelândia antes de regressar a malaca e à índia. dediquei capítulos separados a cada viagem.
por outro lado, parece irónico que tenha sido deixada ao cargo de um académico australiano a tarefa de avaliar o significado da prova-chave que pode ser encontrada nos mais de 100 nomes em língua portuguesa (incluindo nomes de santos católicos) que adornam as costas dos dois mapas vallard que indiscutivelmente representam as costas da austrália. os nomes são reais, e descrevem lugares reais. como foram ali parar? seria expectável que um académico português tentasse avaliar o seu significado. na realidade, foram totalmente ignorados.
o professor molony, por outro lado, chegou a conclusões interessantes. entre os santos da índia portuguesa que identificou no seu estudo da costa leste do mapa vallard, está santa catarina, cujo nome mendonça atribuiu ao que hoje chamamos rio maroochy, na costa de queensland, a norte de brisbane. molony nota que a cidade muçulmana de goa foi tomada por afonso de albuquerque no dia de santa catarina (25 de novembro) de 1510. albuquerque mandou edificar ali uma igreja dedicada àquela santa. tornar-se-ia a catedral de goa e, por essa via, catarina tornou-se a padroeira da cidade.
são francisco, cujo nome (na sua versão francesa) foi dado ao rio fitzroy, no trópico de capricórnio, também tinha fortes ligações a goa. o professor molony recorda que os franciscanos portugueses foram os primeiros a chegar a goa com albuquerque e que construíram uma igreja dedicada a são francisco em 1517. também nota que havia em goa outra igreja dedicada pelos franciscanos a santo andré (ainda hoje um destacado local de peregrinação), cujo nome aparece noutro rio mais a sul.
por fim, mas não menos importante, aparece o nome aparentemente estranho de ‘baía neve’. mas não tão estranho assim se pensarmos que há menos de 60 anos, antes de a mineração industrial de areia ter começado, as costas de botany bay estavam cobertas de altas dunas de areia branca, e que ‘neve’ era o termo usado no século xvi para areia branca.
o documento recentemente descoberto que regista a constituição e a partida da expedição do rei d. manuel também nos ajuda a reconstituir a viagem de regresso do navio-almirante e a identificar pela primeira vez duas importantes ilhas do pacífico que mendonça evidentemente descobriu – ilhas que nunca antes haviam sido avistadas por europeus.
perdidas no pacífico bem a norte da nova zelândia o mapa vallard representa duas ilhas bastante grandes com os nomes ‘ila dos tubaros’ e ‘ila do aljofar’. até aqui, ninguém tinha conseguido identificá-las com algum grau de certeza. o problema tem duas vertentes: primeiro, a sua longitude é incerta porque os navegadores do século xvi não tinham meios para a determinar com rigor; em segundo lugar, porque havia a falsa crença de que a costa norte da austrália estava na continuação da costa norte de java.
mas agora pedro eanes o francês pode vir em nosso auxílio. os seus cálculos da latitude no mapa vallard revelaram-se de uma exactidão extraordinária, como é testemunhado pelo facto de ele ter conseguido indicar o trópico de capricórnio na costa leste da austrália a uns escassos quilómetros da sua posição correcta – ligeiramente a norte do estuário do rio fitzroy, a que o mapa vallard chama ‘rio s. fransois’. a ortografia francesa parece um indício seguro da mão da eanes.
a ‘ila dos tubaros’ no mapa vallard surge aproximadamente na mesma latitude que outro rio importante de queenslad, cerca de mil km a norte do fitzroy, a que ele no mapa chama rio primero. este equivale ao rio daintree. se seguirmos a linha da latitude para leste a partir do daintree o que encontramos? a resposta é que há apenas uma grande ilha no pacífico próxima desta latitude – a ilha principal das fiji, viti levu. e a costa oeste de viti levu tem uma semelhança inegável com a costa oeste da ‘ila dos tubaros’, com a grande baía de nandy em destaque. as águas ao largo das fiji abundam em tubarões. por isso podemos concluir razoavelmente que o percurso de mendonça a partir da nova zelândia (em relação à qual as fiji se situam mais ou menos a norte) o levou a avistar a costa oeste de viti levu. mas ele certamente não se demoraria a explorar a costa leste desta ilha desconhecida, pelo que o recorte desajustado da costa leste deve ser quase de certeza uma tentativa fantasiosa do cartógrafo de dieppe de preencher o vazio.
e quanto à outra grande ilha do pacífico, a noroeste, a ‘ila do aljofar’? num mapa moderno, a posição desta ilha em relação às fiji corresponde a vanuatu, o grande grupo de ilhas da melanésia. mas a qual ilha do arquipélago? no mapa vallard, esta pequena ilha recebeu o intrigante nome de illa carma.
os mapas habituais de vanuatu não são grande ajuda. nenhum deles mostra uma grande ilha com outra ilha próxima que corresponda a esta descrição. é só quando se olha para uma mapa satélite de grande escala que a verdade emerge. a ilha representada no mapa do século xvi é sem dúvida a ilha principal de efate – onde se situa a capital de vanuatu, honiara – pois ao largo da costa noroeste de efate há de facto uma longa e estreita cadeia de ilhas. parece ser um ancoradouro ideal, abrigado dos ventos de oeste predominantes. e de facto foi usado como tal pela marinha norte-americana durante a ii guerra mundial.
terá sido aqui, a sotavento da illa carma, que o são cristóvão de mendonça ancorou. e o mais notável é que o nome inglês para esta ilha abrigada é ‘tranquility island (ilha da tranquilidade) – ou seja, traduzido é quase idêntico ao que mendonça lhe atribuiu há quase 500 anos! como adquiriu o nome actual parece ter-se perdido na neblina do tempo. se há alguma ligação a qualquer visita de um navio português, desconhecemos: provavelmente será pura coincidência. em relação ao nome atribuído à ilha principal, ‘ila do aljofar’, sugere que durante a sua paragem mendonça e os seus navios se permitiram negociar em pérolas negras do pacífico, que ainda hoje se encontram à venda em honiara.
não sabemos se por esta altura o navio-almirante se encontrava sozinho ou na companhia de outro navio mais pequeno. o regresso de mendonça à índia ainda nesse ano parece ter sido rodeado de secretismo. os registos oficiais nada nos dizem. a única coisa que sabemos com certeza é que ele regressou a tempo de comandar a nau vitória na sua viagem de regresso a portugal no início de 1524.
a viagem épica de mendonça não merece ser subvalorizada. a sua descoberta e mapeamento da austrália e nova zelândia, ocorrida uns meros 30 anos depois de cristóvão colombo ter chegado às américas, foi um feito notável do qual portugal se deve justamente orgulhar.