A Ucrânia e a bipolarização

À parte das oscilações das moedas, a Ucrânia e a criação de dois espaços geopolíticos e ideológicos – um democrático, outro autocrático-referido pelo presidente Biden na sua viagem à Europa, já teve consequências na disputa entre as duas grandes potências.

por V.R.R

A invasão da Ucrânia além de outras vítimas atingiu a ordem política internacional liberal. Num mundo onde era já clara a emergência de potências “iliberais” – China, Rússia, Turquia, Arábia Saudita, e até Índia e Paquistão – a erupção da guerra quente, convencional, na Europa Oriental, está a pôr termo ao sistema que se instalara no final da Guerra Fria, seguindo o princípio de quem ganha, instala ou procura instalar o seu sistema político-social. O que os Soviéticos fizeram no fim da Segunda Guerra na Europa Oriental e os neoconservadores americanos tentaram fazer na Rússia depois de 1992.

 

Amizade inquebrantável

Considerando os efeitos para a China e as suas ambições de expansão de poder e influência no mundo, alguns analistas esperavam vê-la tomar uma atitude de distanciamento e até de condenação de Moscovo e longe do “agressor”. Mas não é isso que aconteceu e que está acontecer. Embora a linguagem oficial da diplomacia de Pequim seja ambígua, a verdade é que altos responsáveis chineses exprimiram claramente a ideia de que a amizade russo-chinesa é inquebrantável; e na China a informação sobre o conflito e as suas responsabilidades endossa a narrativa russa.

Nem outra coisa seria de esperar de Pequim, hoje decididamente apostada num reforço do poder do Partido Comunista Chinês (PCC) no país e do Presidente Xi Jinping no Partido.

Essa estratégia tem muito a ganhar com o conflito russo-ucraniano que, em termos de propaganda e de guerra económica, atira a Rússia para os braços e para a protecção da China. Embora não haja grandes semelhanças ideológicas entre os regimes, a posição dos “ocidentais”, atlânticos ou euroamericanos, isolando e condenando a Rússia em bloco, empurra Putin e os russos para a sombra e dependência do seu vizinho asiático.

E este não deixará de explorar as vantagens assim criadas, não passando de ilusões, as análises que esperam de Pequim uma atitude descomprometida, mesmo imparcial, que lhe permitiria ser um honest broker de uma solução negociada.

 

O factor económico

Bem longe disso, embora o discurso dos representantes de Pequim venha eivado daquela retórica onusiana da paz e fraternidade entre os povos, a realidade é outra, a começar pela economia, embora no caso em questão, a política e os interesses estratégicos contem mais que a economia.

O comércio entre a Rússia e a China tem vindo a crescer – o valor que no ano passado atingiu, 147 biliões de Dólares norte-americanos, duplicou desde 2015; e, a partir das novas sanções causadas pela guerra da Ucrânia vai, com certeza, crescer a ritmos maiores para poder atingir, em 2024 os 250 biliões. A Rússia é superavitária neste comércio, exportando para a China petróleo, gás, carvão e produtos agrícolas. A Rússia é o segundo exportador de petróleo para a China, depois da Arábia Saudita, vendendo cerca de 1.600.000 barris/dia, parte dos quais seguem através dos 4.070 kms do pipeline da Sibéria Oriental Oceano Pacífico (ESPO). A Rússia é, também o segundo fornecedor carvão da China e o nº 3 de gás.

Segundo analistas da Reuters, ao aumento exponencial do comércio bilateral junta-se o esforço dos dois parceiros em afastar-se dos pagamentos em Dólares e de retirar os seus negócios financeiros da rede SWIFT. Esta diversificação pode impulsionar uma coisa que a China vem procurando, na última década conseguir – criar um espaço financeiro alternativo ao sistema de hegemonia do Dólar norte-americano.

Note-se aliás que as sanções e a sua mecânica e consequências criaram uma convergência de factores nesse sentido; enquanto o rublo russo tem vindo a cair, desde a invasão da Ucrânia e do anúncio das sanções, o renminbi chinês, não só não caiu como até se valorizou em relação ao Euro e ao Dólar americano.

Isto vem ao encontro dos esforços chineses, nas últimas duas décadas, para “globalizar” a sua moeda, e impô-la nos pagamentos internacionais, esforço que tem conhecido algum sucesso, ao ponto de destronar o yen japonês como quarta moeda no ranking SWIFT dos pagamentos internacionais.

 

O elefante na sala

À parte das oscilações das moedas, a Ucrânia e a criação de dois espaços geopolíticos e ideológicos – um democrático, outro autocrático -referido pelo presidente Biden na sua viagem à Europa, já teve consequências na disputa entre as duas grandes potências. Pelo menos no orçamento americano, com Biden a pedir o aumento das despesas militares no orçamento de 5,8 triliões de Dólares que vai apresentar ao Congresso. O pedido é para 773 biliões de Dólares, o que representa um aumento de cerca de 10% em relação ao orçamento anterior, de 2021.

Não são boas notícias para os representantes e senadores mais progressistas; no Orçamento está incluída uma verba de 6,9 biliões de Dólares para a NATO enfrentar as ameaças da Rússia.

Mas a China é e será, nos próximos anos, o Elefante na Sala.