Armando Marques Guedes é professor catedrático da Universidade Nova, dando ainda aulas no Instituto Universitário Militar, no Instituto de Defesa Nacional, no Instituto de Ciências Policiais e Segurança Interna e no Instituto Nacional de Administração.
Além disso, foi presidente do Instituto Diplomático, nomeado por Diogo Freitas do Amaral, no tempo em que o primeiro-ministro era José Sócrates, e depois diretor de policy planning do Ministério dos Negócios Estrangeiros, sendo membro de mais de três dezenas de think-tanks em Portugal e no estrangeiro.
É, pois, um homem que conhece bem os meios diplomáticos e a área da Defesa Nacional.
Ora, na semana passada, na SIC Notícias, este homem disse o seguinte: «Deixe-me fazer um apelo final a uma coisa que me indigna. Escolho bem a palavra: ‘traidores’. Aqui em Portugal, no gabinete do primeiro-ministro, há um embaixador, um coronel e outros oficiais-generais a trabalhar para a Rússia. Isto é uma vergonha!».
Estas acusações poderiam ter sido proferidas imponderadamente, no calor de uma discussão. Mas não: foram ditas intencionalmente, como coisa pensada antes.
No entanto, apesar de estarmos perante uma verdadeira ‘bomba’, a pivô de serviço não insistiu no tema e ‘despediu’ rapidamente o convidado. Foi estranho. Como estranho foi que nos telejornais seguintes não tenham passado estas declarações. O silêncio foi total.
Nos dias seguintes nenhum meio de comunicação social pegou no assunto – nem televisão nem imprensa –, e Armando Marques Guedes não voltou a aparecer na SIC Notícias, onde era presença regular a comentar a guerra.
Perante isto, pensei: o homem teve um momento de desvario, de loucura, mas depois caiu em si, pediu à estação para não repetirem o que tinha dito, e os outros meios, avisados, não reproduziram as suas declarações.
Só que, inesperadamente, Marques Guedes voltou a surgir no pequeno ecrã – embora já não na SIC mas na CMTV. E, puxando deliberadamente pelo assunto, reafirmou tudo o que dissera antes – apenas ressalvando que da sua lista de ‘suspeitos’ não fazia parte o major-general Carlos Branco.
De novo sobre o tema caiu um pesado manto de silêncio – e só no Nascer do SOL o assunto seria tratado abertamente, com o gabinete de António Costa a declarar: «O gabinete do primeiro-ministro repudia categoricamente as afirmações, que são pura mentira e difamação em cada uma e todas as suas palavras e decidiu avançar com um processo judicial em sede própria».
Mas como entender que, depois de acusações de tamanha gravidade feitas num meio de grande audiência por uma pessoa altamente colocada, só três dias depois o gabinete do primeiro-ministro tenha reagido? E se a resposta deste for ‘Porque nenhum meio de comunicação social nos interpelou antes’, como explicar esse facto?
Estamos perante um caso perfeitamente insólito, que não me recordo de alguma vez ter acontecido. Os jornalistas geralmente fervem em pouca água, transformando em ‘escândalos’ assuntos sem qualquer importância. Custa muito a perceber, pois, que tenham ficado calados num tema como este. O que se passou? Que pressões se fizeram? Quem as fez? E quem as aceitou?
É perfeitamente óbvio que houve pressões políticas para o assunto não ser tratado. Estamos perante uma questão muitíssimo delicada. Num país da NATO, numa altura em que decorre na Europa uma guerra envolvendo a Rússia, a hipótese de haver gente no gabinete do primeiro-ministro a colaborar com os russos é de uma gravidade enorme.
Mas até por isso se exigiria uma investigação cabal – e não o silenciamento, como aconteceu. Ninguém tratou do assunto, ninguém procurou saber se as acusações tinham fundamento, ninguém investigou quem eram os suspeitos, ninguém – à exceção deste jornal – pediu uma reação ao gabinete visado nas acusações.
E aparentemente o ‘acusador’ foi despedido da SIC. Pelo menos, o seu aparecimento posterior na CMTV induz essa ideia.
Estas acusações de Marques Guedes surgiram numa altura em que alguns militares-comentadores habitués das televisões começavam a ser contestados pelo seu aparente alinhamento com a Rússia.
É certo que a um comentador se pede isenção. Não deve dizer o que as pessoas querem ouvir mas sim aquilo que resulta da sua análise imparcial – doa a quem doer. Nesta linha, no início do conflito ouvimos alguns militares prever que o Exército russo esmagaria facilmente o da Ucrânia, adiantando que a resistência ucraniana «não serviria para nada» e apenas teria como consequência provocar mais mortes. Só que isto era dito por vezes de uma forma gelada, que parecia revelar algum alinhamento com a posição da Rússia.
E a verdade é que se enganaram redondamente, pelo menos na facilidade com que antecipavam a vitória russa.
Mas atenção: mesmo admitindo que alguns desses militares-comentadores são pró-russos, e apoiam a ação de Putin – fascinados pela sua frieza e determinação –, é preciso dizer que têm todo o direito de exprimir a sua opinião. Mesmo numa guerra em que não parece difícil escolher o campo, em que um colosso procura dominar pela força bruta uma nação independente e impor-lhe um destino, temos de aceitar as opiniões divergentes.
Insultar os militares-comentadores, atacar os jornalistas – como Sousa Tavares ou Carlos Fino – que defendem as posições da Rússia, não é aceitável.
Se as acusações de Armando Marques Guedes são gravíssimas e o seu silenciamento é criticável, também não é admissível uma caça às bruxas a pessoas que, no exercício do seu direito de opinião, apoiam Putin neste conflito.
Tenho estado muitas vezes em minoria, escrevendo contra a corrente em algumas acesas polémicas, e sei o que isso é.
Admito que num conflito como este – em que vemos um Exército entrar por outro país dentro a disparar, a matar gente, a arrasar prédios, hospitais e escolas, num espetáculo de devastação que pensávamos só poder ver no cinema –, custa-nos muito ouvir alguém defender os argumentos do agressor ou criticar o agredido. Como se este devesse ter ficado quieto, batendo palmas aos tanques que invadiam o seu país.
Mas mesmo num caso que não parece suscitar dúvidas, temos de aceitar democraticamente as opiniões contrárias. O pior que há é a imposição a uma comunidade, por qualquer forma, de um pensamento único.