Uma liberdade libertada!

Vendo o que está a acontecer agora na Rússia, não posso estar mais grato a quem me deixou como herança esta Igreja liberta das garras da Política. 

Alguns grupos da Igreja ainda sonham com a reconstituição da união entre a Igreja e o Estado. Deseja-se, muitas vezes, que o Estado concorra com as ideias e as doutrinas da própria Igreja na elaboração das suas leis. Eu, porém, nunca pensei em abençoar tanto os bispos que, na Primeira República, tiveram de organizar a Igreja com a separação entre a Igreja e o Estado. Não deve ter sido fácil, mas deve ter sido um grande alívio.

Alguns pensam que o Estado se emancipou da Igreja, mas eu, pelo contrário, penso que a Igreja vivia agrilhoada pela própria política e a Lei da Separação entre a Igreja e o Estado trouxe uma liberdade que até então a Igreja não tinha. A Igreja podia agora decidir os destinos dos seus clérigos, profetizar contra as políticas e os governos, avançar com a sua pastoral sem ter de dar contas aos políticos.

Vendo o que está a acontecer agora na Rússia, não posso estar mais grato a quem me deixou como herança esta Igreja liberta das garras da Política. Esta ideia de que a Igreja Ortodoxa Russa, liderada pelo Patriarca Kiril, não tenha profetizado contra esta invasão à Ucrânia, leva-me a repensar muito do que sentia sobre este tema.

Não há dúvida que a separação entre a Igreja e o Estado é um bem para a própria Igreja. Muitos chamar-me-ão modernista (porque eu sei que esta é uma ideia modernista), mas não me importo. Eu, na verdade, até começo a pensar que sou um liberal. 

No futuro, teremos de nos habituar a viver numa sociedade em que Lei aprove tudo e mais umas botas. Vamos, mesmo, ter de conviver com a multiculturalidade, com a diversidade, com a heresia legalizada, com a perseguição à fé, com a incompreensão. 

Prefiro assim! Prefiro que o Estado siga o seu caminho, mas eu ter a liberdade de seguir o meu caminho e que cada um possa seguir o seu caminho. É verdade que se coloca um problema filosófico ou moral: pode uma lei aprovar uma realidade da vida que seja conforme ao erro? É estúpido, mas é verdade: sim, a democracia e o liberalismo leva-nos para que tal possa acontecer… 

Começam a aparecer muitas leis que contrariam a própria investigação científica e que, quer filosófica, quer cientificamente, são um erro! Mas temos de ter coragem de assumir que este será o futuro. O Estado vai legislar conforme as paixões individuais e sociais. 

O trabalho da Igreja, no entanto, é de ajudar os homens a viverem esta liberdade profética de renunciarem a realidade que, mesmo legais, são imorais. 

É um preço que temos de pagar? Sim… mas é preferível sermos livres a estarmos agrilhoados pelo Estado e pela Política, ou ser a Igreja a agrilhoar o que quer que seja.

A Igreja precisa, mesmo, de encontrar formas de libertar os homens e não de os aprisionar a leis. O que vejo na história de Israel é simples: apesar do pecado do homem, Deus está sempre à procura de uma forma de salvar o homem das suas manias. 

Eu nem me consigo imaginar viver debaixo de uma Igreja que legitime tamanha injustiça como é esta que está a acontecer na Ucrânia. Eu tenho até a sensação de que o futuro da Igreja Ortodoxa Russa estará totalmente comprometido com esta guerra. Muitos dos ucranianos são mesmo parte desta Igreja, mas estão a ser agredidos por aqueles que os deviam proteger.

Situações destas ocorreram no passado na Igreja Católica e o trauma persiste na memória coletiva até aos dias de hoje. Mesmo com uma história mal contada, as Cruzadas ainda são um problema. Mesmo com muitas mentiras, não sei se algum dia iremos compreender a Inquisição. 

De facto, eu penso que prefiro correr o risco de viver numa sociedade liberal que me deixa errar, mas que me dá a liberdade de voltar à verdade, do que viver numa sociedade que não me deixa pensar.