Selecção Nacional. Quando os italianos nos ensinaram a palavra vitória

Dia 18 de Junho de 1925 – até aí, Portugal só sabia perder. Quatro jogos, quatro derrotas, todas contra a Espanha. De repente, o sol abriu-se em Lisboa, no velho Stadium do Lumiar. Um triunfo surpreendente e muito festejado contra uma selecção italiana que parecia ser inultrapassável.

Não deve haver um único hino nacional onde não surja a palavra vitória. Bem, no espanhol não aparece de certeza, mas porque nem sequer tem letra, só música. No Canto degli Italiani, também chamado de Fratelli d’Italia, a vitória busca-se. Onde está, perguntam: «Dov’è la Vittoria?/Le porga la chioma/Ché schiava di Roma/Iddio la creò». Todos nós esperávamos por um Portugal-Itália, no Porto, na última terça-feira. De repente, a vitória faltou à Itália, e os italianos não vieram. Mas a Itália fará sempre parte da história da nossa seleção nacional de futebol – foi contra ela que soubemos pela primeira vez o que era uma vitória. Até aí as coisa não tinham corrido bem, convenhamos: 1-3, 1-2, 0-3, 0-2. Éramos considerados fraquinhos…

Um mês antes de recebermos a Itália, tínhamos perdido sem espinhas contra os espanhóis. Também em Lisboa. As expectativas estavam pelas ruas da amargura.

Em 1925, a solução técnica utilizada durante os primeiros três encontros da equipa de Portugal, a do chamado Comité de Seleção, composto por técnicos e dirigentes com a responsabilidade de repartirem entre si as decisões da escolha e treinamento dos selecionados, foi posta de parte. Não definitivamente porque a FPF viria a recuperar a ideia, embora com outros moldes, em ocasiões posteriores. Mas, Ribeiro dos Reis foi o homem chamado para assumir o cargo de selecionador único. Desportista conceituado, profundo conhecedor das regras do jogo, homem de formação militar que lhe dava, igualmente, uma enorme base de estudo no desenvolvimento da educação física, esperava-se dele que fosse capaz de apaziguar os desentendimentos latentes entre o Norte e o Sul na fase sempre complicada das opções. Como primeiro grande desafio, coube-lhe preparar a receção à Espanha que continuava a ser o nosso adversário de estimação. Só que, dessa vez, não se tratava apenas de um jogo destinado a repetir-se somente no ano seguinte. Aproveitando a deslocação que a Itália tinha programada para defrontar a Espanha em Valência, no dia 14 de Junho, foi enviado um convite aos italianos para que viessem de seguida a Lisboa jogar contra Portugal.

A receção montada aos espanhóis voltou a ser apoteótica. Chegados à Estação do Rossio num «sleeping-car» atrelado ao Rápido de Madrid, os jogadores do país vizinho desfaziam-se em simpatias. Samitier, o capitão, El Mago de la Pelota, como lhe chamavam, não tinha dúvidas: «Portugal, depois de  perder connosco, vencerá a Itália! Os italianos jogarão aqui quatro dias depois de nos defrontarem. Devem vir cansados e combalidos. E Portugal vai aproveitar».

Uma simpatia que se perspetivava no tempo para o mês seguinte. Porque para o Portugal-Espanha, os espanhóis não acreditavam noutro resultado que não a vitória da sua equipa. Como se via.

Em Maio de 1925, Portugal vivia então o sonho do primeiro triunfo. Não frente aos italianos mas já contra os espanhóis. A esperança estava mais acesa do que nunca. Porquê? Porque se pacificara o futebol português, porque Ribeiro dos Reis tinha um enorme apoio popular e, principalmente, porque a imprensa fazia questão de se abster de criticar o seu trabalho antes de ver a seleção jogar.

Apesar de toda esta onda de otimismo, que provocou a maior assistência que até aí se vira, Portugal voltou a perder. O resultado foi seco e não deixou grandes margens para dúvidas: 0-2, com golos de Piera e Carmelo. Mas as discussões e as críticas ao comportamento da Espanha eclodiram com violência. Ainda impreparados para a componente competitiva do jogo, os portugueses queixavam-se da falta de desportivismo dos adversários, da lentidão com que repunham a bola em jogo depois de estarem em vantagem, da forma como permitiam que ela saísse pelas quatro linhas em lances em que podiam evitá-lo, da agressividade que colocavam nos movimentos defensivos.

 

Um público furioso

O público, apaixonado, não ovacionara desta vez a Espanha. Pelo contrário, desdobrara-se em vaias e assobios. O Século escrevia pela pena de um jornalista indignado: «Os espanhóis não se conduziram com o “aplomb” irrepreensível que esperávamos. Chegaram a provocar “throw ins” quando era perfeitamente possível não o fazer. Não podemos tecer louvores à sua correção». O futebol mudara e Portugal ainda não dera por isso.

Não havia tempo para carpir mágoas, no entanto. A Itália chegaria a Lisboa dentro de menos de um mês e os portugueses não queriam perder nova possibilidade de chegarem à tão desejada vitória. Curiosamente, a presença em Portugal das representações de Espanha e de Itália, países submetidos a regimes autoritários como eram o de Primo de Rivera e de Benito Mussolini, davam aos acontecimentos um peso político de alguma forma relevante. Pouco tempo antes, a 18 de Abril, à semelhança do que já sucedera a 5 de Março e do que se viria a repetir a 19 de Julho, uma tentativa de revolta militar tinha sido sufocada pelo Governo democrático de Vitorino Guimarães. O exército e até a opinião pública começavam a desenvolver uma simpatia crescente por uma solução de tipo espanhol ou italiano. O Estado de Sítio fora declarado e imposta a censura à imprensa. O 28 de Maio de 1926 estava embrionário.

Controlados no seu serviço noticioso, os jornais dão larguíssimo destaque aos Jogos Portugueses, uma competição nacional de hipismo, atletismo, ciclismo e ginástica, à estreia de uma nova companhia de circo no Coliseu com 101 artistas na arena e à inauguração dos famosos haut-parleurs que iriam permitir a todos os espetadores serem avisados do que se passava no recinto. O jogo do Stadium, no Lumiar, entre portugueses e italianos despertava o entusiasmo habitual e a curiosidade acrescida de se poder ver atuar em Lisboa uma seleção de futebol que não fosse a espanhola. Balonceri, jogador do Alessandria e capitão da Itália, queria repetir a esplêndida exibição de quatro dias antes, face à Espanha (0-1), em Valência. O enviado especial da Gazzetta dello Sport era claríssimo na sua apreciação a essa derrota: «Foi o fantástico Zamora que ganhou o jogo para a Espanha! Sozinho!».

Se Portugal só se estreou como equipa nacional no dia 17 de Dezembro de 1921, a Itália já em 1910 que disputava partidas com seleções estrangeiras – por exemplo, nesse ano bateu a França por 6-2 e levou 1-6 da Hungria. Não era ainda a grande potência em que se transformaria dez anos mais tarde às mãos de Vittorio Pozzo, Aliás, as suas três presenças nos Jogos Olímpicos tinham redundado em atuações pouco entusiasmantes, mas a sua experiência era incomparavelmente maior do que a dos portugueses, com frequentes desafios internacionais disputados desde o final da primeira década do século, entre os quais sobressaíam vitórias gordas frente à França (6-2, 9-4 e 7-0, esta no mês de Março anterior ao jogo de Lisboa) mas também derrotas estrondosas face à Hungria (1-7), à Checoslováquia (1-5) e à Áustria (0-4).

 

Pouco otimismo

Não haveria, por isso, grandes motivos para dar largas ao otimismo. Ainda por cima, desde cedo Portugal viu-se a contas com um estilo de jogo ao qual não estava minimamente habituado, assente em passes longos e bolas altas para as costas dos defesas. Demorou, por isso, a tirar partido da qualidade dos seus melhores jogadores e nunca o conseguiu verdadeiramente até final da partida. Apenas Figueiredo se destacou da desorientação geral com lances de grande perigo para os italianos.

Trocam-se ramos de flores; galhardetes entre capitães; Jorge Vieira, o capitão português, tem direito a umas palavras de circunstância antes de o jogo começar: «O moral da minha equipa é o melhor! Os rapazes não contem nem ganhar nem perder. Contam resistir e jogar lealmente». As agências telegráficas internacionais anunciaram na véspera que tinham instruções para enviar, via cabo, via ordinária ou via_T.S.F, telegramas sucessivos com críticas e informações, como se se tratasse de um ato político para a resolução de um problema internacional (sic).  Na Alameda do Lumiar havia um formigueiro de gente pelas 17h15, três quartos de hora antes de o desafio ter início. Carro, side-cars e carroças enfeitadas eram às centenas. Com arbitragem do belga Theuerkhauff, as equipas entraram em campo desta forma:

PORTUGAL – Francisco Vieira (Benfica); António Pinho (Casa Pia) e Jorge Vieira (Sporting, capitão); Raul Figueiredo (Olhanense), Augusto Silva (Belenenses) e César de Matos (Belenenses); Domingos Neves (Olhanense), Mário Carvalho (Benfica), João Francisco Maia (Sporting), José Delfim (Olhanense) e Fonseca Castro (Académico do Porto);

ITÁLIA – Gianpiero Combi (Juventus); Virginio Rosetta (Juventus) e Umberto Caligaris (Casale); Adolfo Baloncieri (Alessandria, capitão), Luigi Burlando (Génova) e Pietro Genovesi (Bolonha); Giuseppe Gandini (Alessandria), Leopoldo Conti (Inter), Mario Magnozzi (Livorno) Giuseppe Della Valle (Bolonha) e Giuseppe Forlivesi (Modena) – entraram no segundo tempo, a substituir Gandini e Forlivesi, respetivamente Fulvio Bernardini (Lazio) e Antonio Fayenz Padova).

A Itália, essa sim, estava entregue a uma comissão técnica composta por A. Rangone, G. Milano e G, Baccani.

A cinco minutos do intervalo, Domingos Neves marca um canto e o keeper, o juventino Combi só consegue sacudir a bola para a frente. Na recarga, João Francisco Maia chuta com força e faz o golo. Portugal tem, então, medo de deixar fugir a tão ambicionada vitória. Dedica toda a segunda parte a defender o golo de vantagem mas o ataque italiano também não revela grande capacidade para criar perigo junto da baliza de Francisco Vieira. Quando o árbitro apita para o final do jogo, o público rejubila, invade o campo, leva os seus jogadores aos ombros em triunfo (o primeiro de todos!). No ar estalam foguetes. Os cláxones dos automóveis fazem, por toda a Lisboa, um barulho irritante. Quem viu o jogo com olhar crítico sai do estádio com a certeza de que acabou de assistir a um jogo menor.

Voltemos por mais um pouco à memória de Ricardo Ornellas, um dos grandes historiadores dos primórdios do futebol português, o homem que inventou a expressão Equipa-de-Todos-Nós: «Começou-se, pois, com quatro desafios contra a Espanha; não havia outro adversário… Quatro derrotas, a primeira regateada com galhardia, a segunda normal, se bem que o empate não tivesse sido impossível, a terceira “inglória e desilusão”, e a quarta ditada pela impressão depressiva que causou na equipa o ter havido, na primeira avançada, um remate (de João Francisco) em que a bola bateu na trave. Se tivesse sido golo, que teria sucedido? Depois, aproveitando a vinda a Espanha da equipa italiana, recebeu-se a Itália. “Vamos perder com certeza”, era a previsão generalizada – e com justificação. Mas não se perdeu; ganhou-se por 1-0. Um golo, então irreprimível do mesmo João Francisco, que afinal não tardou muito pois a Itália visitou-nos pouco depois da Espanha. E nestes cinco desafios se passaram quatro anos. À influência do par Pinho-Jorge Vieira, juntou-se a criação de uma linha de médios Figueiredo-Augusto Silva-César, dois setores que pertencem à história do futebol português».

Ribeiro dos Reis vai manter-se no cargo por mais dez meses, assumindo em seguida funções diretivas na federação. Mas não consegue repetir o êxito. Em Janeiro de 1926, Portugal defronta a Checoslováquia e, pela primeira vez, o jogo é no Porto, no campo do Amial, geralmente utilizado pelo Sport Progresso e onde o FC Porto também jogava. Empata 1-1. Em Abril desloca-se a Toulouse para defrontar a França e é derrotado por 2-4. O último jogo desse ano, outra vez no Porto, frente à Hungria (3-3), em Dezembro, já é disputado sob o comando do seu grande amigo e companheiro Cândido de Oliveira, com o qual, vinte anos mais tarde, juntamente com Vicente de Melo, fundará o jornal A Bola. Foram os italianos a ensinar-nos a palavra vitória. Mesmo que, agora, tenham decidido faltar ao tão esperado compromisso. Pior para eles…