Festejar o quê com salários de miséria?

Como Horta Osório relembra que «só no dicionário é que sucesso vem à frente do trabalho», também só neste país é que se faz crer que os direitos antecedem os deveres, quando estes, mesmo no dicionário, são anteriores àqueles.

Joana Mortágua escreveu no jornal i desta última quinta-feira um interessante artigo de opinião que começa com uma pergunta – «O 25 de Abril é de Todos?» – e termina com uma citação da canção de José Barata-Moura: «Cravo vermelho ao peito a muitos fica bem, sobretudo faz jeito a certos filhos da mãe».

O artigo da bloquista tem como destinatários óbvios os seus rivais do Iniciativa Liberal, que é assim um género de BE de direita, porque no polo oposto daquele em matéria de economia, liberal e anti-Estado para atrair o eleitorado empreendedor e conservador, e mais extremista ainda no que concerne aos costumes, porque extrema as liberalidades individuais que o tornam popular entre o eleitorado jovem e urbano.

Mas a verdade é que os versos daquela letra de Barata-Moura assentam que nem uma luva em muitos mais daqueles que chegaram a descer a Av. da Liberdade ou ainda descem ou ostentam o dito cravo vermelho e nada se identificam com os ideais e sonhos dos que o fazem por convicção e devoção e se arrogam arautos da democracia. É comum entre extremistas, fanáticos ou incautos.

Ora, democrata é aquele que respeita a diferença, a liberdade de expressão e de opinião, a liberdade de afirmação e de manifestação, a liberdade de pensamento e o pluralismo, quem aceita a decisão da maioria e não discrimina as minorias…

Ou seja, o que essas minorias, proclamando a liberdade, não fazem, porque apenas alardeiam a democracia para o que lhes convém. O que não é democrático.

Passados 48 anos sobre o 25 de Abril, é o que temos.

E as comemorações dos 50 anos do 25 de Abril, que já começaram coxas com a ausência de figuras referenciais da democracia – como Ramalho Eanes ou Manuel Alegre –, prometem arrastar-se com querelas e divisões na sociedade portuguesa.

Daí que seja ainda maior o já de si tremendo erro do Presidente Marcelo ao tirar da cartola a peregrina ideia de condecorar todos os militares de Abril, de Rosa Coutinho a António de Spínola, ou, vá lá entender-se porquê, Vasco Gonçalves.

Não, em nada contribui para a conciliação dos portugueses com a sua História.

Antes pelo contrário, só gera indignações e revoltas que o tempo não curou e que porventura nem outras cinco décadas sararão.

Até porque há uma revolução de mentalidades que está por fazer.

Comemorar Abril com salários de miséria num país a atrasar-se cada vez mais em relação ao resto da Europa só pode ser masoquismo.

Ou «falta de ambição», como diz António Horta Osório em entrevista publicada na quarta-feira no mesmo jornal (Público) onde na semana anterior Cavaco Silva acusara António Costa de «falta de coragem política» para promover as reformas indispensáveis para contrariar o atraso estrutural de Portugal.

Como podem os portugueses conformar-se com níveis de rendimento que são metade dos espanhóis ou um terço dos irlandeses? – questiona Horta Osório, gestor de topo mundial.

Os portugueses não podem continuar a ter salários de miséria, a perder poder de compra e a empobrecer – a comparação com a vizinha Espanha é avassaladora, sobretudo se olharmos para a realidade dos dois países ibéricos há 50 anos. Com a Irlanda, então, nem se fala.

Mas, como Horta Osório relembra que «só no dicionário é que sucesso vem à frente do trabalho», também só neste país é que se faz crer que os direitos antecedem os deveres, quando estes, mesmo no dicionário, são anteriores àqueles.

A maioria dos direitos conquista-se com o cumprimento dos deveres.

Em França, é o salário de um português que tem estado no centro de uma forte polémica, ao ponto de até os dois candidatos à segunda volta das presidenciais, que se disputa amanhã, terem sido obrigados a tomar posição.

Emmanuel Macron e Marine Le Pen, de direita e extrema-direita, afirmaram-se «chocados» com os rendimentos de Carlos Tavares, que recebeu 19 milhões de euros no ano findo de 2021.

Carlos Tavares não é futebolista, nem cantor, nem estrela de cinema. É um gestor de topo mundial, que, após décadas na Renault, aceitou o convite para liderar o grupo rival que estava à beira da falência e que, em menos de um ano, passou de prejuízos a lucros e, após processo de fusão com outras marcas, já é líder de mercado e com lucros acima do previsto.

Carlos Tavares gerou riqueza para os seus acionistas acima do que estes lhe exigiam e garantiu milhares de postos de trabalho.

A França pode ter razão em queixar-se que a Stellanis – gigante automóvel que Carlos Tavares levou ao topo – constituiu a sua sede nos Países Baixos, mas, quanto ao resto, melhor seria que se preocupasse em atrair mais gestores como Carlos Tavares em vez de se chocar com o seu vencimento.

Os portugueses devem olhar para este e outros exemplos e cuidar de começar a criar riqueza em vez de apenas reclamarem direitos que consideram adquiridos por efeito de um golpe militar e de um povo que saiu à rua há quase 50 anos.

E que, cinco décadas depois, cada vez mais atrasados na Europa e com salários de miséria, festejam. ‘Filhos da mãe’!