Marcello Caetano: o aggiornamento impossível

«O homem que deu tudo quanto tinha ao país, e deu o seu melhor, e agora está deitado para o lixo.» Marcello Caetano, Depoimento, 1974

Por Maria de Fátima Bonifácio, historiadora 

Marcello Caetano foi um político que não chegou a tempo ao seu tempo. Independentemente do que ele escreveu sobre si mesmo, e do muito que sobre ele se escreveu, as entrevistas com Miguel Caetano, publicadas no Nascer do SOL em agosto e setembro do ano passado, tornam patente que o ex-Presidente do Conselho, deposto no 25 de Abril de 1974, tentou durante o seu consulado fazer uma impossível quadratura do círculo. Em 1968, na sequência da morte de Salazar, o então já considerado ‘delfim’ do regime apresentou-se ao país com um lema: ‘Evolução na continuidade’. Estávamos em finais dos anos sessenta, em cima do Maio de 68. Marcelo não percebeu que a maioria do país não queria continuidade nenhuma, queria evolução, e muitos queriam até uma revolução. 

 

Esta ideia repugnava a um conservador, embora reformista, que entendia, tal como Salazar entendera, que o Mundo estava dividido entre o Império Soviético e o Mundo Livre, democrático, polarizado nos Estados Unidos da América, deixando a Europa vulnerável face às ambições expansionistas da Rússia comunista. No seu entender, era imperioso defender e proteger a Civilização Cristã, ameaçada pelo ateísmo bolchevique. É indispensável ter em conta este pano de fundo para perceber o conservadorismo de Marcello Caetano. Racionalista e metódico, via na Democracia uma porta aberta ao caos revolucionário, inaugurado pela Revolução Francesa, cujo legado portanto rejeitou. Marcello percebia a III Internacional Comunista, fundada por Lenine em 1919, como uma ameaça ao status quo do mundo ocidental e da Europa em particular.

Portanto, também Portugal estava ameaçado. Este juízo não era inteiramente fantasioso. Nos primeiros tempos do Estado Novo, os velhos republicanos eram a oposição. Isto mudou com a crescente afirmação do PCP – apesar da PIDE – e a divulgação da sua ideologia, que acabou por se tornar hegemónica. Até os ‘católicos progressistas’ foram contaminados, e muitos deles, convertidos às teses de Moscovo, viraram as costas a Marcello Caetano e foram juntar-se em vigília na capela do Rato (1973), protestando contra a guerra colonial e glorificando os movimentos de libertação nacional que nas nossas colónias se esforçavam por alijar o jugo de Portugal. Julgavam-se certamente legitimados pelo Papa Paulo VI, que já em 1970 recebera em audiência os dirigentes dos movimentos de libertação africanos. E não só: o facto é que nesta altura Portugal, devido à sua intransigência colonialista, já estava internacionalmente completamente isolado. A idealização marcelista de uma autonomia progressiva de colónias multirraciais – ‘novos Brasis’ em África, não convencia ninguém.

Internamente, Marcello era também ele um homem isolado por todos os lados. A SEDES, Associação para o Desenvolvimento Económico e Social, fundada em Outubro de 1970, entra em conflito com o Presidente do Conselho, que tinha desse desenvolvimento uma concepção diferente, mais moderada e economicamente menos liberalizadora. A morte de Pinto Leite, líder da ‘Ala Liberal’ da Assembleia Nacional, com cerca de trinta deputados, abriu caminho à rebeldia, agora encabeçada pelo irreverente Sá Carneiro. Marcello achou que era a hora de apelar para os seus. Mas quem eram os seus? O regime, que prometera abertura, fechou-se. E, do outro lado, os ‘ultras’ do salazarismo apertaram o cerco. Marcelo encapsulou-se no círculo restrito dos seus amigos fiéis.

O famoso massacre de Wiriyamu, ocorrido na província de Tete, em Moçambique, em Dezembro de 1972, piorou tudo. Marcello demitiu os responsáveis, mas, como afirmou Miguel Caetano numa das referidas entrevistas, «acabou por abrir um conflito com os altos comandos militares a meio de uma guerra». Para o que quer que fosse, Marcello precisaria sempre das Forças Armadas. «Quando as Forças Armadas lhe falham, ele fica no ar.» Há já tempos que Marcello estava em conflito com Fernando dos Santos Costa, oficial do Exército e ex-ministro da Defesa de Salazar, um ‘ultra’ feroz. Também as suas relações com Américo Thomaz eram marcadas por uma fricção que não lhe facilitava a vida. Thomaz, que os portugueses recordam pela sua patente obtusidade, era a figura de proa da reacção militar – e era também o Presidente da República. Não queria saber das autonomias progressivas engendradas por Caetano como forma de procurar acertar o passo com o seu tempo. Bem pelo contrário, opunha-se a elas. Marcello não tinha como se lhe opor: faltava-lhe para isso força política, ou, talvez mais exactamente, faltava-lhe a legitimidade de um Salazar.

A irreverência das altas patentes militares culminou, já em Fevereiro de 1974, com a publicação, pelo general Spínola, de Portugal e o Futuro, um livro que fez furor e entusiasmou todas as oposições. Não era apenas Spínola que conspirava, havia um cúmplice (provisório), o general Costa Gomes. Marcello demitiu-os, mas, num sinal de indisfarçável fraqueza, manteve-os no activo. Esta circunstância só pode ter animado o Movimento dos Capitães, criado uns tempos antes, em data incerta. Em Março dá-se o levantamento das Caldas, falhado. Mas foi sol de pouca dura: em 25 de Abril, o pronunciamento militar dos capitães triunfou.

Retrospectivamente, Miguel Caetano comentava: «O facto é que o meu pai não conseguiu obter o apoio de uma ala moderna.» O diagnóstico está correcto mas falta esclarecer o essencial: o que seria ‘uma ala moderna’? Uma ala moderna que coubesse dentro da ANP, um pobre sucedâneo da União Nacional? Marcello Caetano parece nunca ter percebido que uma ala moderna, no seu tempo, já só podia ser uma ala democrática. A polícia política, a censura e as eleições manipuladas não fazem a Democracia, são a sua negação. O principal problema com que ele se deparou na sua governação foi a falta de uma legitimidade popular. Mas ele era um homem de outro tempo, já desfasado da época em que foi chamado a governar.